quinta-feira, 1 de abril de 2010

Não julgue o verbo ler... Leia.


- Mutante?
- Sim?
- Conte-me uma história.


E começou assim. Um pedido saindo de um livro que, por sua vez, acabou saindo de minha cabeça após uma tarde inteira folheando páginas. Li outra vez A Sombra do Vento, de Zafón. Foi como um combustível alimentando o tanque do cérebro, enchendo a engrenagem da imaginação até a borda. Uma sensação única, quando se está imerso no abrigo de uma história, sendo ela amaldiçoada ou não. Sou suspeita neste caso; sempre imagino uma gama de cores, gestos e vozes saindo das linhas no papel para a perumba do meu quarto, a tal ponto que fico extremamente viciada - e no pior dos casos, dependente - pelo universo do tal livro.
É daí que saem as minhas próprias histórias.
Sem falar naqueles extras que assisto sem querer na troca de canal; narrações sobre os contos que ouvíamos desde muito pequenos, tramas singelas de infância que foram se transformando nos enigmas hipnóticos, a cada vez que retiramos aquele livro velho do armário para novamente sermos tragados por ele. Fica a dica. Sigo aproveitando meu feriado no melhor estilo livro e sofá, esquecendo, por hora, a visita do coelho. Resolvi, assim por acaso, repetir o gesto. Quase o fiz escondido, por medo de que algum par de olhos descobrisse minha travessura. E olha quem diria... posso até sentir o silvo do vento no movimento breve de folhas frágeis, no aroma meio amargo de chocolate no ar. Uma sombra no vento...

P.S.: É bom receber um livro até mesmo na cestinha de Páscoa. Um abraço ao meu fiel amigo mutante; sinto falta das diferenças nas nossas histórias... outro abraço à minha 'coisaquirida' Lu, que hoje me mandou um recado. E um super abração merecido à minha própria quinta-feira, que me embarcou em uma viagem sem fim aos desenhos animados no sótão do Caju.

Boa noite!

(:

terça-feira, 30 de março de 2010

Bem-vindo de volta, Frank

Caro,

Fico feliz em saber que posso comunicar boas notícias nesta carta que lhe envio. Considerando meu contingente de reclamações por minuto na última semana, devo primeiramente lhe pedir desculpas pelo comportamento digno de alguém abissalmente tolo e desprovido de senso. Prometo fervorosamente uma melhora em meu núcleo danificado no decorrer deste novo recomeço.
Como pronunciado de início, digo-lhe que as coisas por aqui vão bem, apesar das poucas contradições que me levaram a calcular um outro ponto de vista. Minha atual baía de pensamentos encontra-se bem abastecida de reações que pendem para o lado pleno de meu cérebro, não somente guiada pela parte instintiva, como antes. Considere tal afirmação um pequeno bônus gratificante de uma parcela gradativa de melhoras em meu eu. Seria ferir o próprio ego, mas admito que mesmo os erros fossem capazes de compensaram a mudança abrupta de identidade criminosa. Meu único delito foi me deixar levar pelo instinto puro de sobrevivência, cujo escape me conduziu à plenitude desejada.
É de suma importância abordar o fato de que meu porto de navegação não escaparia do náufrago certeiro e irreversível se não fosse pelas suas palavras de conforto e a promessa de manhãs melhores. A maior parcela de mim decidiu guiar-se por inteiro a este barco que carregou suas esperanças na viagem que acompanhou as minhas. A trajetória desconhecida foi o ápice de todas as decisões secundárias. Se eu preferia ter desistido do risco para seguir no velho conjugado de lembranças mofadas? A resposta agora rola fácil por minha garganta. Não. Definitivamente não. Meu lado aventureiro foi igualmente abastecido, e lhe agradeço por isso. Eu não teria sido capaz de comprar a passagem sozinha.
Entrementes, prefiro não por em pauta os motivos restantes que nos levaram a essa mudança de rota. Desventuras imprevisíveis são as mais excitantes linhas a serem desbravadas, e como você mesmo me sussurrou em uma noite tempestiva sobre minha cabeceira, o modo mais viável de se escapar do perigo é justamente lutar para enfrentá-lo. Bem, é o que farei a partir desta manhã, contrariando meu bom senso, apesar de todo o resto. Por isso estou aqui agora.

PS: Com o máximo cuidado para não contrair os dedos e amassar o bilhete de metrô.

Abraços,
Lauren.


Dobrei a folha de papel ao meio e a entreguei ao homem que me acompanhava. Não foi difícil ouvir seu riso baixo, apesar do tumulto na estação. Seus dedos roçaram nos meus, salpicando-os com as gotas da chuva que se estendia infinitesimalmente por todo o distrito de Rushmoor. Não havia falhas no tempo, contudo, eu esperava que a nova estação quebrasse o pacto rústico das nuvens carregadas.
Era de certo modo reconfortante saber que eu estava deixando essa atmosfera para trás.
Os passos de Jason detiveram-se a fim de acompanhar minha lentidão.
– Minha caixa de correspondências está lotada, você sabe...
Sua voz rouca e baixa era o único som que eu podia ouvir.
– Eu sei. Esta é a última do pacote.
Eu estava voltando ao condado natal, em Durhan. O lugar do qual – pensando sob uma nova perspectiva – eu nunca deveria ter saído.
– Cora... – meu pai me chamou por meu segundo nome que lhe era preferido, naquela voz baixa, conforme eu seguia para o metrô. – Me ligue quando chegar.
Eu me virei. Nós éramos parecidos em tudo, tanto física quanto psicologicamente. Os profundos olhos avelã postados em meu rosto pálido sob uma camada grossa de cílios longos eram os mesmos que agora me observavam. Assenti, duvidando que o tranco em minha garganta passasse de imediato; a nostalgia da partida me acompanharia pelas próximas cinco horas.
– Seus avós cuidarão bem de você – continuou ele, ajeitando a desordem dos cabelos escuros na falta de melhores gestos que disfarçassem o nervosismo. – Procure não ser tão... inflexível.
– Tudo bem, pai – envolvi suas mãos nas minhas e sustentei o olhar, ultimamente tão preocupado. – Vai ser bom para mim. Para nós.
O barulho constante da chuva tamborilava mais forte em meus ouvidos, junto do pandemônio de passos dos transeuntes. Então o torpor havia passado.
– Mande lembranças a eles – pediu Jason. Nossos dedos iam escapando, e aos poucos eu não conseguia ver mais nada além dos passageiros que me engolfavam. As portas do metrô se fecharam e eu acenei para o rosto que ainda se despedia, para o condado de Hampshire e às folhas amortalhadas que ficavam para trás...


P.S.: Primeiro epílogo oficial de meu Frankstein. É quase um milagre eu ter conseguido alguns parágrafos decentes nessa última semana de cão. Preciso de um depósito com novos ares, refrescar a cabeça, dispersar o estresse no contingente de tarefas de uma formanda que tenta a todo custo manter a identidade de escritora à altura desejada. Aos amigos, um abraço e um obrigado por me aturarem quando nem mesmo eu estava com paciência para mim. Irei resgatar meu Frank das profundezas tediosas de meu cérebro.

Abraços! (:

domingo, 28 de março de 2010

Soneto

"Tua caminhada ainda não terminou....
A realidade te acolhe
dizendo que pela frente
o horizonte da vida necessita
de tuas palavras
e do teu silêncio.

Se amanhã sentires saudades,
lembra-te da fantasia e
sonha com tua próxima vitória.
Vitória que todas as armas do mundo
jamais conseguirão obter,
porque é uma vitória que surge da paz
e não do ressentimento.

É certo que irás encontrar situações
tempestuosas novamente,
mas haverá de ver sempre
o lado bom da chuva que cai
e não a faceta do raio que destrói.

Tu és jovem.
Atender a quem te chama é belo,
lutar por quem te rejeita
é quase chegar a perfeição.
A juventude precisa de sonhos
e se nutrir de lembranças,
assim como o leito dos rios
precisa da água que rola
e o coração necessita de afeto.

Não faças do amanhã
o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo
que nunca mais.
Teus passos ficaram.
Olhes para trás...
mas vá em frente
pois há muitos que precisam
que chegues para poderem seguir-te."



Charles Chaplin

P.S.:Um obrigado à trilha dessa última semana; o acústico de The Last Shadow Puppets. Ah, e aos filmes que deixaram o tempo chuvoso um pouco mais doce; Elizabethtown, PS I Love You e Pride and Prejudice.


;)

domingo, 21 de março de 2010

Uma dose de palavras, por favor.

"As construções pareciam grudadas umas nas outras, quase todas de casas pequenas e edifícios de ar nervoso. Havia uma neve suja, estendida feito um tapete. Havia concreto, árvores nuas que pareciam porta-chapéus, e um ar cinzento. "

"Pensando, não pela primeira vez, que a vida deveria vir com um alçapão. Simplesmente uma pequena escotilha de saída na qual você pudesse desaparecer quando tivesse absoluto e completamente se envergonhado. Ou quando você tivesse erupções de espinhas espontâneas."

"Perder-se também é caminho."


"Todas as máscaras caem um dia. Assim como no teatro, quando falas declamadas não passam de meras palavras soltas aos ouvidos errados. Se assim fosse, haveriam sombras ao invés de atores."

"Uma ave deve voar, mesmo que o céu esteja cheio de abutres."

"A morte é apenas uma travessia do mundo, tal como os amigos, que atravessam o mar, e permanecem vivos uns nos outros. Porque sentem necessidades de estar presentes, para amar e viver o que é onipresente. Nesse espelho divino, vêem-se face a face; e sua conversa é livre e pura. Este é o consolo dos amigos e embora se diga que morrem, sua amizade e convívio estão, no melhor sentido, sempre presentes, porque são imortais."


"Num mundo onde já não há romance, o melhor é estarmos mortos."

"Descansa do som no silêncio, e do silêncio digna-te retornar ao som. Sozinho, se souberes estar só, deixa-te ir por vezes à multidão. "


"Ausência é uma forma de estar presente sem que o ausente saiba."

"Há pensamentos que são orações. Há momentos em que qualquer que seja a posição do corpo, a alma está de joelhos."

"O fim do homem é sempre mais marcado que o seu início. O pôr-do-sol, a música de encerramento, assim como a última mordida num doce, sempre mais doce no final... O que é escrito na lembrança vale mais do que o que ficou perdido no passado."

"Ele segue entrelaçando tramas e enigmas ao modo de bonecas russas. Eu sigo dialogando sobre poetas malditos, línguas mortas e obras-primas abandonadas à mercê da traça."

"Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está escondida numa caixa de bombons."

"Primeiro me fizeram os meios, depois as pontas. Só muito mais tarde cheguei aos extremos."

"A esperança é crônica. O medo é agudo."

"Uma definição não encontrada no dicionário: não ir embora; ato de confiança e amor, comumente decifrado por crianças."

"A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse por quê..."

"Atuar é a arte de fazer todo mundo ficar sem tossir por um tempão."

"A vida não tem de ser preto e branco. Acrescenta-lhe um pouco de vermelho."

"Todos os livros deveriam vir com uma trilha sonora."

"Tenho milhares de momentos desse tipo - meu cérebro adormece ou algo assim e, quando me dou conta, vejo que perdi alguma coisa."

"Gosto do céu cor de chocolate. Chocolate escuro, bem escuro. As pessoas dizem que condiz comigo..."

"Contos de fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos."

"Muitas vezes procuramos a felicidade como quando procuramos os óculos quando estão no nariz."

"Às vezes o simples fato de você dizer que detesta alguma coisa e ter alguém que concorda pode ajudá-lo a suportar uma situação horrível."

"Anjos nunca vêm de graça.Primeiro você odeia amá-los,então você ama odiá-los."

"Nunca troquei o velho pelo novo. Desde pequena, sou antiga."

"Se você procurar todas as respostas, acabará louco. Se já for louco, procure todas as respostas. Enquanto ainda houverem perguntas, continuarei a escrever."

P.S.: Uma colher de chá com frases extraídas do baú do empório.

Na rota do conto


Imagino eu mesma em um lugar isolado do resto quando esbarro em certas histórias. Um empório totalmente diferente do qual estou acostumada a narrar meus fatos inventados. Elas saltam de repente em minha linha de visão, quase sempre entre aspas que descrevem sua estranheza única, e acabam por me fascinar. Uma livraria inabitada no fim da rua estreita, ou uma tabacaria mal frequentada de cheiro acre. Cenários assim. É quase como uma crise de consciência que só se revela quando a primeira página é lida, para daí cairmos de fuça no conto e sermos prisioneiros de suas aspas.
O porquê dessa rota?
Hoje reli Neil Gaiman - tenho um sério fascínio por Coraline - e daí parti para Stephen King. Graças a eles minhas entrelinhas voltaram para casa.

"As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem - as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou quando estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda."

P.S.: Agradecimento às recentes obras lidas e esquecidas em meu velho empório: Agatha Christie, Victor Hugo, Mark Twain e Ralph Waldo Emerson.
;)

Stare

" - Às vezes, acredito que seis coisas impossíveis acontecem antes do café da manhã...
É loucura?
Disseram-me que as nossas vidas não valem grande coisa...
Elas passam em instantes, como murcham as rosas.
Disseram-me que o tempo que desliza é um bastardo!
Que das nossas tristezas ele faz suas cobertas...
Disseram-me que o destino debocha de nós.
Que ele não nos dá nada e nos promete tudo...
Nos faz acreditar que a felicidade está no alcance das mãos...
Então a gente estende a mão e se descobre louco!
- Mas aqui vai um segredo: antes do café, há apenas o sonho.
E quanto à loucura... Todas as boas pessoas são assim.
P.S.: É um segredo. Não diga ao destino que eu contei a você."

P.S².:Dedicado à fiel amiga bucaneira. Abraços, Ann.
(:

sábado, 20 de março de 2010

Desventuras

"Somente o pintor e aqueles que sabem ver têm acesso irrestrito ao espaço mágico."

Essa é uma de minhas histórias favoritas, apesar de ela ainda não ter sido inventada. Pode-se dizer que a escritora está em um processo demorado de manutenção da mente; procurando meios de ressuscitar entrelinhas perdidas. Por motivos meramente incompreensíveis aos olhos fadados à realidade sem fantasia, Dill (o pseudônimo escolhido pela escritora no conto de hoje) arrumou os prós e contras à mesa, a fim de que a história seja inventada. Embromações serão desnecesárias no decorrer das linhas. Exceto, é claro, na introdução.
Devo mencionar que a narrativa deve ser narrada a partir do fim, não do começo. Há coisas impossíveis que somente tornam-se possíveis no fim da meada, na transição de um verso a outro. Se essas coisas fossem reveladas no cabeçalho da página, elas tampouco distinguiriam o possível do impossível.
Iniciando a embromação do cumprimento, nada mais justo do que apresentar a personagem que melhor sabe separar a fantasia da realidade e, ainda assim, mesclar ambas nos momentos de silêncio. Elise preferia viver em seu próprio mundo enroscado nas camadas do mundo em que seus pensamentos não eram entendidos, compreendidos ou compartilhados. Ninguém reconhecia suas entrelinhas, tampouco sabiam o que era realizado por suas mãos no decorrer dos dias. Não era uma garotinha isolada do resto, mas também não era mais garota. Como os longos cabelos de ébano, Elise crescera em altura e maestria. Os dedos longos, brancos e sempre gelados teciam melodias sobre as teclas do velho piano herdado da mãe já falecida, como aranhas moldavam suas teias em um infinito espaço de tempo. Os olhos, profundos e silenciosos como um poço de vilarejo, por vezes gritavam, espantando epifanias à mercê das notas. Era sua única distração, sua única paixão em um conceito que ela mesma desconhecia; o golpe da graça. O resto é que se desviava dela, como um curso de trem modificado às pressas. Engrenagens iam formulando suas próprias rotas na estranheza adquirida diante da janela do sobrado onde Elise residia. A garota que não mais se encaixava nesse perfil, no ápice de seus 19 aprendera a seguir seu nariz em momentos de dúvida e desespero. Na melancolia ela traçava a felicidade de ser triste, quando vez ou outra conversava em paz consigo mesma. Não eram conversas muito proveitosas para serem levadas adiante; serviam mais de mercadoria indispensável. Em um resumo embromado, Elise era assim: uma recém jovem na busca contínua de uma identidade que a servisse devidamente. Algo que não fosse um espartilho, e sim algumas peças que lhe fossem confortáveis e a permitissem seguir sempre em frente com segurança na direção dos campos verdes. Os olhos gritantes desbravavam sonhos em cifras, os cabelos soltos corriam na leveza do vento e as poucas palavras pronunciavam-se na força da tempestade. Como um pintor, Elise tinha total acesso à sua única magia de mundo moldada nas teias de suas vontades. Ela era maravilhosamente estranha aos olhos da escritora. Uma peça única no xadrez. A excessão da desventura que se iniciava a partir do fim.
Aqui, dependendo se vai ou fica, uma pequena parte de crônica surge na invenção que flutua sobre o tédio de sábado da Dill. Desventuras criadas em diferentes épocas e regiões. Particularmente, eu sugeria um condado suburbano em terras inglesas nubladas.
Mas aí seriam semelhanças demais.

P.S.: Eu acabei de processar um epílogo? Ele tem razão, a história nem ao menos foi criada. Uma coisa sem pé nem cabeça que surgiu de uma música. Ao menos serviu para me levantar e espantar a mesmice com um safanão bem merecido. Continuo a desenvolver capítulos a partir daqui, com algumas peças novas de xadrez à mercê do outono e das xícaras sagradas de café.

Abraços! (:

quinta-feira, 18 de março de 2010

Pena e Pergaminho (em construção)

Quero escrever noções, sem o uso abusivo da palavra.
Quero escrever borrões vermelhos de sangue.

Burilando falas. Processando capítulos.
Blog em manutenção.


;)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Pouco aos poucos

"Ouve-me. Ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa que na verdade falo, porque eu mesma não posso." Clarice Lispector

A quarta se dividiu em lapsos de serenidade e melancolia. Pela manhã, uma conversa com o pai sobre futuro. Inventei carinhosamente um caminho inacabado, compartilhando-o desajeitadamente. Não sou de expressar sonhos em voz alta; os revelo com uma piscadela, uma frase. Alguma palavra solta com o signficado do qual preciso. Cabe aos que ficam próximos decifrarem os enigmas de minhas engrenagens. Não é uma questão de lógica, e sim de contato. Meus dedos geralmente são frios, marcas que não se alteram mesmo em constante movimento na trajetória de linhas. Com mais atenção, notam-se as olheiras sob a cavidade de meus olhos; resultado de um processo intuitivo de quem se assusta em perder as entrelinhas. Tenho vontade de escrever, mas não consigo. Sinto falta da liberdade do papel, da viagem da alma, da companhia certa. Sem pensar em um porquê, criação sem esforço. Simplicidade com jeito aprofundado. Sinto falta de mim. Nesses dias tempestivos, fragmentos de mim se espalharam por aí. Restaram alguns buracos. Quando o vento sopra da costa leste, sinto a vibração reverberar no oco. Prefiro chamar tal reação de ausência; e não é que prefiro, a palavra em si não me agrada. Lembra de uma parte tremendamente desejável, mas inalcansável. Linhas insistentes que pipocam em algum lugar ao fundo, mas que não podem completar a transição concreta. Ficam presas no calabouço, à espreita, cutucando as feridas furadas. Ausência do que é necessário ouvir, que propositalmente corre pelo lado oposto ao qual me encontro. Dói, mas é administrável. Como quando o pai nega o doce após o dever cumprido. A divisão se completou no arrastar das horas, intercaladas à tarde pela companhia inocente de quem não necessita que eu faça sentido ou me explique. Estou devendo uma ao meu irmãozinho por essa. Depois da despedida costumeira, meus devaneios eram notas de piano ondulando pelos buracos. Ajudou-me a relaxar, canalizar a dor incompreensível para outros canais menos importantes. Um salgado meramente desejável. Eu estava cercada de palavras carinhosas, reconfortantes... rodeada por livros e olhares amigos que, inconscientemente, preenchiam devagar o oco originado pela solitária palavra que me fugira. As companhias preservavam meu silêncio gritante, aceitavam-no como um complemento intrínseco de mim. As linhas foram silenciando, partindo nos ombros da dúvida por outros cantos. Deixando meus ombros livres para repousarem em um abraço. Uma prova do doce ao fim da noite. Senti o vento apostando corrida com as batidas aceleradas do coração na volta para casa, emaranhando meu cabelo. Revisei meus atos, me dando conta de que nenhuma piscadela fora pronunciada, nenhuma frase fora rabiscada no cabeçalho. A palavra chave já estava esquecida. O único contato intuitivo do qual me lembro fora a conversa desajeitada no início da manhã. Eu lhe disse que teria uma livraria, um caminho inacabado carinhosamente proposto por mim mesma, um pouco aos poucos no decorrer das entrelinhas. Voltarei a escrever, separando um espaço para as expressões de meu enigma se desenvolverem. Deixarei minhas palavras respirarem, desequilibradas em meus complementos. Acompanharei o rumo do vento sempre que sentir a necessidade da vibração ondular por meus pedaços recuperados. Estou em manutenção.


Abraços! ;)

Digam "doce"...

"Ela disse:
-Nathi, tira uma foto.
Os dois murmurando cantigas de ninar, lançando olhares para a cesta de chocolates. Arrumei a câmera imaginária ao melhor ângulo, incluindo todos em um infinito segundo...
Clique."

P.S.:Dedicado àqueles que trocaram livros e apertos de mão: mana Sam, mano Will e Richard Amendoim. Um beijo na alma de cada um!
;)

domingo, 14 de março de 2010

Pauta em notas


"Em Elizabeth Carrow State Park tudo era sempre tranqüilo. As folhas caíam em uma harmonia natural com a brisa leve, permitindo a respiração de imergir e ressurgir em meus pulmões com facilidade enquanto as teorias deixavam de me atormentar. Eu esperava pacientemente, assumindo uma parte de mim que se deliciava com o contato próximo, mas que reclamava a tortura por isso. Ela estava sentada ao meu lado em um banco adornado de metal, olhando distraída para as árvores e os balanços solitários entre a pouca luz em um círculo raso no gramado em volta. Eram olhos perturbados que continham um brilho oprimido, destacando o que não fora dito.
Um recanto de fuga, onde nem mesmo eu me encontraria."

P.S.: Uma pauta no fim do domingo novamente chuvoso. Inspirada no local visitado em sonho e transmitido a um amigo. Por fim, o agradecimento às notas de piano que me acompanharam ao longo das linhas de hoje.
Abraços! ^^

quarta-feira, 10 de março de 2010

Baralho na mesa

"Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim."

Clarice Lispector


É possível mudar uma concepção de mundo em menos de uma hora? Se significar eu ter me virado toda do avesso, posto os olhos para dentro a fim de desbravar o funcionamento de meu condado interior, então eu me mudei.
O mundo sempre me pareceu uma grande bola de gude. Daquelas mais brilhantes e entusiásticas que a gente topa por acaso em uma vitrine quando criança; uma bola de gude dada de presente, com a promessa de ser cuidada, mas que acabou desgastada pelo tempo. Eu até agora só explorei minha face de mundo, suas devidas cores e denominações, cada dia com o toque suposto a ser, cada gota pingando um sabor diferente e único. Proveitoso. Todas as minhas motivações originaram-se de meus propósitos e suas diversas consequências. Até provei do errado para fabricar o certo. Ignorei o mais impertinente caminho e parti para a rota desocupada de quem não conhece a tradução do infortúnio. Minha ambição é o conforto. Troquei os acordes pelas teclas mornas do piano. Rearrumei meu cafofo. Revisitei o mar em pensamento. Morri metamorficamente em desgosto e decepção. Nasci de novo em novas provas de carinho e necessidade de se estar junto com quem quase não conheço, mas que me conhece mais do que posso me descrever. Compreendi a poesia que abominava no primeiro grau. Xinguei a professora antes de adaptar o conteúdo. Virei a cara aos que falam todo o tempo que me compreendem, mas que na verdade não reconhecem lhufas de mim. Abri meus braços para os riscos. Avancei rabiscos. Aprendi a matar baratas. Estou há mais de um ano longe do sul e consegui não pegar sotaque de barriga verde. Meu placar de gols aumentou de um para três. Descobri que posso gostar de matemática quando não estou com sono. Posso desprezar o português e suas regras de predicados. Estou viciada em desenhos infantis e filmes de época. Minha atual pretenção é costurar uma almofada e bordar um pano de prato. Acredito mais em assombrações e contos de fada do que pensei ser saudável. Troquei a timidez pela simpatia. Destrocei insultos em pessoas erradas e formatei elogios em pessoas erradas, também. Estou até hoje criando a pessoa certa em meu inconsciente. Daqui a alguns anos, minha moradia será uma casa de campo com muitos dálmatas. Aprendi a cozinhar razoavelmente bem após um mês de completar 18. Prefiro salgados a doces. Escrevo um livro por dia só com as imagens que capto de meu cotidiano. Reproduzo histórias, rebobino contos, invento crônicas. Um dia vou passar uma noite com meus netos perto da lareira e me lembrar que já fui como eles ao identificar cada diferença. Vou abraçar meus avós bem forte antes disso. Vou ter um conjugado para morar com minhas amigas da faculdade. Vou desfilar na passarela da cama no quarto. Plantarei roseiras, colherei frutos. Baterei perna no shopping. Namorarei um porsche enquanto ainda não puder comprá-lo. Jogarei baralho todas as noites. Serei mais independente do que o restritamente restrito. Acenarei um tchau para os que ficarem. Aprimorarei meu inglês na Grande Londres. Terei uma coleção de sapatos. Terei uma nova história em mim, um capítulo para cada variável dia. Escreverei o final com dedos dançantes, atrapalhados e fulminantes. Eu serei a narradora. Dedicarei a sinopse aos desconhecidos de gestos, aos iguais de pensamento. E continuarei sendo eu de um jeito diferente.
Lembrarei à mesma amiga que sempre é possível ser exigente, uma dose a mais do que o necessário, ou o desejável. Porque não é mais um dia-a-dia. É uma vida-a-vida que precisa ser vivida. Simples assim, como respirar entre aspas.
As aspas que descrevem minha nova concepção de mundo. Minha bolinha de gude envelhecida.
Abraços! (:

segunda-feira, 8 de março de 2010

Aquecendo o coração, a mente... e as calças.

"Acho que sábado é a rosa da semana. O domingo, o pirulito. A segunda é aquele café amargo que nos retira da preguiça."

Nesse fim de semana esfriou.
Não aquele frio de trincar os dentes e gelar as orelhas; desse eu sinto falta. Mas foi o suficiente para recorrer às meias. Até choveu! Os dois dias inteiros... um reconfortante barulho constante nas vidraças e no telhado. Foi bem caseiro, incluindo alguns doces e copos de guaraná (aniversário da irmã); assisti com minha mãe os vídeos de Alice (enquanto o bendito filme não chega aqui!). Rimos juntas do adorável Chapeleiro e de toda a história inventada aqui em casa - sabe-se lá como - de meu estranho parentesco com o Depp. Um sonho em forma de piadas internas, por assim dizer.
Quão engraçado é saber que, a apenas uma semana atrás, meu mundinho estava de cabeça para baixo. A rota da trilha distorcida, as imagens enoveladas... um verdadeiro caos, originado da mesma sequência de rostos e vozes, modificados apenas na superfície; alguns pontos continuam os mesmos, inclusive os meus. A questão é saber desviar desses embaraços e deixar os irritantes pontinhos para trás. Com prudência. Coisa que, metodicamente, tento fazer desde o início do recomeço.
Minhas aspirações estavam soterradas pela carga extra de responsabilidades acumuladas. A cabeça ligeramente oca; se eu tivesse a ideia de sacudí-la, poderia ouvir o barulho do nada se agitando em uma órbita ao redor do cérebro. Não havia muito para ser escrito, inventado, bolado, rearrumado. As chaves do empório não estavam mais em meu bolso. Por essas e outras, me desculpo por deixar meu canto empoeirado nos últimos dias. Não é algo que eu me disponha a fazer em momentos seguros de sanidade.
Mas algumas partes - as reais, físicas e emocionais - voltaram ao seu antigo padrão. Ao menos eu espero que sim. Rostos novos, o início do que me parece uma boa amizade sem pontinhos... gemialidades em uma mesma sala, onde o buburinho chega a ser uma cantiga. O padrão onde me sinto à vontade para ser eu mesma, com todas as devidas contradições.
Então minha cabeça voltou à ativa, junto dos dedos que percorrem o teclado na familiar rotina de escrita. Hoje agi quase como Cora, de uma maneira agradável. Simples, mas com a dose certa de humor, um meio de distração para a mente recém desperta, com um significado caseiro e reconfortante. Piadas proferidas ao som da cantiga de chuva.
Foi bom, pois até agora o caos da segunda ainda não se manifestou. É como se o domingo resolvesse se estender e acenar um até logo para o início de semana, um pedido para que volte mais tarde. Eu e meu adorável pequeno bêbado preparamos uma sessão de filmes antigos para assistirmos na sala. Coisa de criança. Um dos velhos e incríveis filmes do Tim, Beetlejuice, que nos arrancou boas risadas e me fez lembrar do quanto eu tinha medo do Besourosuco quando era menor. Depois partimos para A Loja Mágica de Brnquedos, que me fez ter vontade de ter uma coleção infinita de chapéus para poder brincar com amigos mutantes. Recebi uma série de pedidos - seguidos de pulinhos - vindos do Ni. Um macaco de pelúcia, um carrinho de bombeiros, algumas bolas saltitantes... Mal me lembro da última vez em que esqueci do resto para ficar deitada no sofá sonhando com brinquedos.
Agora meu mano está dormindo, o que provavelmente significa que ele deve estar sonhando com seus pedidos. A chuva deu uma trégua, mas ainda se pode ver o passeio das nuvens carregadas escurecendo o céu pouco a pouco através da janela. Outro fator de que gosto; estou até pensando em dar um passeio pela avenida, visitar a livraria. E, não menos importante, sair à busca de uma loja de brinquedos. De preferência, que seja mágica.
Já não me importo tanto com os pontinhos. Outras coisas assumiram um primeiro plano em minha cabeça, coisas mais simples de serem cumpridas. Mais dignas de serem realizadas. Prioridades esquecidas nos dias em que as ideias estavam retorcidas, mas que foram lembradas nos pequenos gestos.
Em resumo: experimente tirar uma tarde para não fazer nada. Absolutamente nada. Assista aquele filme da sua época de dez anos. Se estiver frio, coloque meias coloridas. Cante desafinado aquela música preferida que ninguém conhece. Desenterre o chapéu e finja que é o Chapeleiro Maluco. Obviamente, você pode incluir algumas brincadeiras no pacote. Eu realizei todas elas em um único final de semana.
Bom início de segunda para os desocupados, ocupados além da conta e afins. Estou ouvindo barulho de chuva, sentindo cheiro de terra molhada, junto do café recém passado... Tem coisa mais caseira do que isso?



Abraços! (:

segunda-feira, 1 de março de 2010

Baile de Outono


Noite de segunda-feira.
Início de Março pesado. Algumas intrigas aqui e ali,alguns cumprimentos com segundas intenções... e muitas reclamações. É como se eu tivesse caído estatelada no cenário Gossip Girl de uma segunda feminista. Só que sem os mauricinhos e as roupas de luxo.
Minha passadinha ao empório não tem tempo para reclamações. Vou detalhar a seguir alguns de meus capítulos favoritos entre um arquivo bem complexo guardado em meu baú. Aqueles que levaram horas, dias, semanas para serem escritos e reescritos, mas que valeram o esforço em meio ao tumulto semanal que me persegue.
Previamente, as explicações. (:
Se você por acaso acompanhou todos os posts desde o início de Fevereiro, pode-se dizer que tenha uma ideia vaga do que está rolando por aqui. Ou, se sua última parada foi aqui mesmo, o bom é eu estar sempre me atualizando daqui pra frente. Assim o expediente no empório nunca fica batido.
Minha querida bibliotecária, Cora (que na verdade se intitula Lauren na maioria das vezes, mas gosto de seu segundo nome até mais do que o primeiro), acaba de se mudar para a casa dos avós paternos após um episódio nada memorável de seu cotidiano; a separação de seus pais. Ora, qualquer coisa seria melhor do que morar sozinha no mesmo conjugado cercado de lembranças, uma vez que a mãe se mandara para Roma e o pai seguira seu trabalho nos estúdios da Grande Londres. As alternativas eram limitadas. E os avós eram incomuns, a seu ver. E ao meu também, admito. Eternamente jovens e dispostos a tudo para agradar até a mais degradante alma que cruzasse a soleira da porta. Acho essa uma boa definição a respeito dos Worden.
As coisas iam bem, obrigada. Voltavam aos poucos a seus devidos lugares. Sua rotina se estabilizava, seus passos eram aos poucos reconstutuídos, apesar das breves surpresas e cafés-da-manhã surreais durante a semana. Lauren descobrira que nem tudo fora esquecido como ela pensava. Acho que está na hora de abrir o meu velho baú... retirar do fundo algumas partes do todo e ver o que acontece a seguir. Eu tenho meus palpites.
Boa leitura!
1ºParte - Gemialidades (Bernard)
"A sensação de um dever ainda não cumprido estampava-se no céu cinza-pálido conforme o metrô conduzia alguns estudantes ao ponto mais próximo da universidade. Eu dormia de olhos abertos, mirando a janela embaçada por minha respiração. Também estava ciente de minha aparência deplorável pela manhã ao encarar o reflexo no vidro. Meus cabelos insistiam em permanecer desajeitados, enquanto as olheiras encontravam abrigo sob meus olhos fundos.
Então essa era a vida de um universitário... Você tem de estudar até todas as células de seu cérebro incharem feito bolhas, prestes a serem estouradas por algum momento de esquecimento ou rendição. Eu já me acostumara tanto com essa reação que produzia automaticamente um número muito maior de células desgastadas do que o necessário. Se significasse eu estar condenado a cumprir uma sentença com livros grossos e empoeirados e desenhos inexpressivos, eu poderia muito bem passar pelo resto.
Phil me cumprimentara com seu humor inabalável de sempre. Sua reação à minha insatisfação me fazia perguntar se realmente havia algum problema comigo, algo como uma síndrome adquirida através do anonimato. Para um cara de dezenove anos a popularidade não deveria importar tanto. Mas Phil era diferente; ele gostava de ser o centro das atenções, na educação física ou nas aulas de teatro. E por isso nos aturávamos durante anos. Eu desprezava suas atitudes impensáveis, mas admirava seu senso corajoso. Não sabia muito bem definir minhas qualidades, nem explicar como Phil me aturava.
Preferia não saber a resposta.
– Você mudou de idéia a respeito do baile? – perguntou ele em um bilhete durante a aula de artes. Franzi a testa para o pedaço de papel amassado, rabiscando um não em resposta e jogando-o para a carteira atrás da minha. Ouvi seu suspiro alguns segundos depois e não me preocupei em satisfazê-lo. Assim como ele não desistiria de tentar, eu não mudaria meu argumento original. Eu precisava recuperar o descanso perdido, algo que uma festa com todas as veteranas que tinham a vaidade marcada a ferro nos corpos magros não poderia me oferecer.
Não que eu realmente não pensasse no assunto, ainda que contra minha vontade. Vez ou outra os olhares femininos me seguiam pelos corredores nos intervalos das aulas. Cobiçosos, como leoas preparando-se para investir contra a presa. Sedutores, como quem nunca duvidava de sua capacidade de persuasão. No intervalo antes do almoço topei com duas gêmeas ruivas sorrindo para minha recepção pouco convidativa. Rapidamente recusei o convite duplo com um aceno discreto de cabeça, e voltei para a carteira vaga no fundo da sala. Com tantos representantes do ego masculino espalhados pela universidade em suas roupas que transpareciam os músculos, por que reparar no aluno rejeitado pela tribo dos jogadores deploráveis? Eu não trocaria meu anonimato nem por cem festas nos pubs dispersos da região. Algo como o senso incomum de timidez e autismo era raro e tinha de ser preservado.
Mas havia algo que me impressionava mais do que a capacidade de permanecer camuflado aos olhos das garotas mais bonitas da Claire Norms. Porque por mais que eu negasse meu envolvimento com eventos que reuniam tribos diversas que não se identificavam com meu “nerdismo concentrado”, como Phil me descrevia, crescia em mim um desejo inexplicável de aparecer no universo próximo que me cercava. Uma possibilidade remota, mas que ardia em minhas veias como fogo recusado a ser ignorado. O desejo que ficava à espreita sempre que eu o esquecia, mas que voltava com força total depois que eu voltava a me concentrar nele. E aquilo não fazia o menor sentido. De qualquer jeito, eu precisava descobrir o que era. Mesmo que isso significasse abandonar a fachada anti-social.
– Sabe, estou começando a achar que, para um evento desses, a empolgação está meio fraca – comentou Phil no intervalo do almoço.
Eu o seguia amortalhado, as mãos nos bolsos. Para mim seria tão mais fácil se eu tivesse um tampão nos ouvidos. Uma touca também serviria... No entanto, a lã não me impediria de ignorar o absurdo de seus comentários.
– Eu penso que todos aqui estão empolgados demais – respondi por minha vez, fingindo não perceber o olhar de uma menina loura caminhando mais a frente. Ela parecia meio jovem para estar ali, ou talvez fossem apenas os hormônios de crescimento com defeito.
Phil soltou uma risada. Sua expressão demonstrava toda a sua satisfação às vésperas daquele baile horroroso.
– Não é por que você se recusa a participar da festa que todos irão fazer o mesmo, Bernard – ele sorriu enviesado para a mesma garota que retornava o olhar para nós. – E já que tocamos no assunto, você poderia ao menos tentar mudar de idéia.
– Não estou muito disposto a participar do circo de horrores – murmurei secamente ao me dispor de pouca comida. A fome era mais um recurso humano que me abandonava depois do sono.
– Faça como quiser – disse ele, acompanhando-me à mesa de costume.
– Ei, caras – cumprimentou um jovem de óculos de cristal e aparência abatida. Seu cabelo louro platinado descia-lhe na altura da cintura em um rabo-de-cavalo baixo. Jhonen Nicholas Woodsen era um veterano russo que por acaso acabara se unindo ao nosso grupo pequeno e íntimo de amigos, juntamente de sua irmã, Liadan, a única menina que suportava de boa vontade nossas lamúrias.
– Bom dia – cumprimentou ela com sua voz de neve. Para uma russa, Liadan era mais do que bonita. Seus cabelos negros estavam trançados, destacando o contraste perfeito com os olhos translúcidos e a pele embranquecida. Suas linhas de expressão combinavam quase no mesmo tempo que as de Jhonen, como se eles se comunicassem em sintonia na mímica de olhares.
Era o casal de gêmeos mais estranho e fascinante que eu já tinha conhecido.
– Como vai, Dama das Neves? – brincou Phil, fazendo uma referência antes de sentar.
Liadan ergueu os olhos do livro que lia, contendo um sorriso.
A denominação não lhe era errada. Após um episódio de três noites perdidas em um pub, com o cheiro de incenso cercando a atmosfera de luxúria e uma recusa freqüente a muitos convites de dança, Phil havia perdido a oportunidade de tê-la no topo de sua lista ao receber o fora do século, como ele mesmo me descrevera.
Vindo de uma russa, a frieza não deveria ter sido tão excitante. Meses após o ocorrido e ela ainda se limitava a sorrir quando os dois se cruzavam.
Sem mencionar o fato de que Liadan era a qualificação de garota desejável por todos na Claire Norms. Além do absurdo de sua bela aparência, havia algo no modo em que ela se comunicava apenas com expressões repentinas em seu rosto branco, como se as contorções de sua face bastassem para refletir o que ela pensava sobre qualquer coisa.
Nesse momento, suas sobrancelhas formavam uma linha rígida e seus lábios grossos se crispavam em permanente silêncio.
– Então, o que acham? – Jhonen puxou assunto, brincando com a maçã nas mãos. –Isso aqui está parecendo a semana dos alucinados por noitadas...
– Concordo – respondi prontamente, sem erguer os olhos de meu prato.
– Nada mais normal vindo de vocês – murmurou Liadan, e pude ver que sua a linha de suas sobrancelhas se contorcia outra vez acima das páginas.
Não respondi, pensando que o fato de eu detestar o normal não era compartilhado por ela.
– O que você esperava? – Phil se lançou na conversa com um entusiasmo irrefreável. – Cabeças baixas e rostos deprimidos? Não estamos indo para o fuzilamento.
– Você fugiria se estivéssemos.
Ele dispensou a alfinetada de Liadan com um sorriso que mesclava malícia e divertimento.
– O que você vai fazer hoje, senhorita? – ele tombou a cabeça de lado, encarando-a a através do vidro. Claramente uma tentativa de provocá-la.
– Nada que precise envolver sua presença – respondeu ela calmamente, sem se preocupar em interromper a leitura.
Phil mordeu o lábio.
Perguntei-me se Jhonen não fazia questão de interromper as táticas falidas de Phil em relação à sua irmã. Ele parecia tão passivo nessas horas. Talvez não o incomodasse realmente que um garoto mulherengo estivesse abrindo as asas para cercá-la, ou o motivo para Jhonen ignorá-lo seria justamente para não se aborrecer mais do que o estritamente necessário.
Mas ele era tão diferente quanto sua irmã gêmea. Jhonen era o único garoto que se comprometia em cursar dois estágios e gostar realmente do que fazia. Literatura e Matemática eram as vias de seu conhecimento e formas de pensamento que se uniam com os da irmã como um fio perfeitamente remendado.
– Você me disse que tinha planos depois da aula – comentou Jhonen, olhando-a de relance.
– Sim – concordou ela, finalmente fechando o grosso livro. – Eu pretendia passar no Theatro para me inscrever na secretaria... Estão precisando de novos atendentes.
Eu congelei em minha posição já paralisada. De vez em quando eu esquecia a paixão de Liadan por Artes Cênicas e birutices conturbadas em cima do palco.
– Eu posso ficar a tempo para os ensaios abertos de Angelus – continuou ela, sorrindo mais pronunciadamente agora que Phil desistira de bancar o cavalheiro. – É uma linda peça.
Continuei em minha posição de estresse, me sentindo meio verde.
– O que foi? – perguntou Jhonen, notando minha cara perturbada.
– Nada – respondi por reflexo, de repente desejando não ter posto nada no estômago. Eu estava com náuseas.
Phil me lançou aquele olhar desconfiado de sempre.
– Você está bem? – perguntou ele, me examinando. – Sei lá, você parece meio...
– Eu sei – interrompi suas especulações e desisti do almoço patético. Pedindo licença aos amigos que me olhavam preocupados, levantei-me da mesa com a bandeja em mãos, despejando todo o seu conteúdo na lixeira mais próxima e pousando o objeto vazio na prateleira da bancada. Rumei para a porta transversal que dava para o pátio e Phil me olhou novamente. E não me importei em parecer normal naquele instante.
Assim que pisei no gramado úmido da garoa, pude soltar o ar em meus pulmões. O olhar de Phil dizia claramente o que eu pensava sobre mim mesmo. Era apenas uma paranóia ou eu estava me tornando retardado. Se ao menos eu conseguisse voltar ao torpor de não ser reconhecido, se pudesse imergir de volta em meu mundo sem cores e ficar à vontade para não fazer contato com ninguém importante... Uma única frase bastara para me arrancar de meu estado fatigado e inexpressivo e de certa maneira aquilo me incomodava. Aborrecia-me. Encarei as árvores ao redor, unidas em sua magnitude e extensão, as folhas caindo mortas no chão com o mais leve soprar do vento. Odiei aquela estação e os pensamentos que continuavam gritando em minha cabeça. Odiei o baile que nem havia começado, mas que já causara estragos suficientes na maneira como eu me sentia. A obsessão de ser notado pela única pessoa que não se importava com o acontecimento prévio mais do que eu corrompia meus nervos.
Havia algum modo de ela compreender ou ignorar o acaso como eu tentava fazer com todas as minhas forças? Durante minha permanência naquele espaço que embaçava minhas decisões e julgava a incoerência como em todos os rostos que eu era obrigado a ver por todos os longos dias, resposta alguma me explicava o que havia de diferente. Eu me sentia como se estivesse tão monopolizado quanto eles, e isso me fez sentir apatia por mim mesmo. Novamente as respostas me fugiam, sem me dar tempo para voltar à coerência. Impaciente, larguei-me na relva e mirei as nuvens tempestuosas, desejando afundar na textura que me comprimia."

2ºParte - Vultos (Cora)

"Sempre atribuí a mudança de planos como algo inevitável a ser cumprido. Cá estava eu, na tranqüilidade reprimida de Derwentside pelo propósito de não me envolver mais na relação instável de meus pais. Minha paixão por livros e a facilidade em compreender esse universo em um espaço que eu já considerava um verdadeiro lar era apenas um segundo motivo. O estágio corria bem – apesar dos pequenos conflitos – e, quando conseguia algum tempo livre, me ocupava em recuperar a liberdade em peças teatrais. Essa semana estava sendo pior do que as outras; Angelus possuia uma complexidade difícil de ser administrada para alguém permanentemente instável. Porém, na maior parte do tempo, eu não conseguia me desviar de nada além do expediente na biblioteca.
Bem, as coisas haviam mudado um pouco na última semana.
O Baile de Outono ocorreria dali a algumas semanas. O alvoroço entre os corredores era tangível, pesava no ar como uma carga elétrica e intensa. Estava em todas as conversas e cartas e murmúrios. Era a festa que marcaria o fim do segundo semestre e serviria de desculpa para aproveitar a nova estação. Se não fosse algo tão importante para o resto do corpo estudantil, eu diria que o evento não passava de uma oportunidade para mais encontros e horas discutindo qual traje se destacava mais. Apenas uma noite para esquecer a rotina cansativa que esgotava a capacidade de concentração. Eu poderia sobreviver a isso... Embora admitindo que não conseguisse encontrar um par a tempo. Muito menos um traje apropriado... A vontade de ir não passava de uma pequena motivação para interrogar a mim mesma quem compareceria. As possibilidades eram mínimas.
Então, contradizendo tudo pelo que eu estava sendo obrigada a enfrentar normalmente – sem mencionar a separação iminente que rompera os laços de matrimônio de meus pais e a recente declaração de meu melhor e único amigo anteriormente – eu estava metida em outra enrascada. E dessa vez eu nem cruzara os dedos.
O diretor da universidade, Argus Brookwel, um sujeito alto e íngreme com autoridade suficiente para calar os mais depraváveis alunos calouros, acabara me encontrando sabe-se lá como em meu terceiro dia atrasado na semana, na situação mais deplorável em que já estive; olheiras sob meus olhos e aquele humor de espantar moscas. Para seu incompreensível prazer e minha total surpresa, ele trouxera consigo a última proposta que eu esperava aceitar.
E como eu andava sempre surpreendendo minhas expectativas com artefatos bizarros que nada tinham a ver comigo, decidi arriscar o que a supremacia me impusera.
Entrementes, eu seria a responsável por criar o tema do baile. Graças à recente descoberta do diretor subitamente empolgado por meus dons ocultos. Era verdade que eu sempre ajudava nos preparativos de festas familiares em Londres, - a maior parte delas tramadas por Jason em seus momentos inlúcidos -, justamente por gostar do passatempo e me identificar com as decorações vitorianas em tons escuros e quentes que tanto descreviam minhas prioridades em eventos triviais. Restava descobrir se Argus afinal havia feito uma pesquisa a fundo sobre meu passado mais convidativo e menos recente.
Do qual eu não gostava tanto de lembrar.
Não havia como desapontá-lo agora. Mesmo sendo raptada na toca do lobo eu ainda conservava minhas motivações. Ele nem sequer desconfiava das reais intenções por trás desse ato, é claro. Eu concordara em ajudar se fosse preciso... Mas uma parte de mim queria reconhecer esse desejo como algo satisfatório.
Eu estava sentada embaixo de uma árvore torta, sobre as grossas raízes que quase se encontravam com os galhos curvados, no intervalo do almoço, mal reparando nas folhas secas que caíam na relva pegajosa. Meus olhos exaustos examinavam os detalhes de esboços do tema na tela do laptop. Eu não podia deixar de admitir que fosse um pouco macabro, e que havia escolhido exatamente aquele de propósito. Uma reação às normas não cumpridas e à violação das regras por meio de olhares mal intencionados. Ajeitei meus óculos de modo a poder admirar minha obra-prima, digna de um filme de terror.
Um pátio que lembrava muito com uma floresta nessa época do ano ocupava toda a tela, cercado de árvores mortas e folhas secas, iluminadas pela claridade fraca do fim de tarde. A lua se pronunciava pelo abeto das copas, refletindo no centro, onde se encontrava um vulto encapuzado virado de costas, parecendo prosseguir cada vez mais fundo no coração escuro da aparente floresta sombria. Bem acima, os dizeres em letras douradas: Baile de Outono. Claire Norms University. Eu estava pensando em acrescentar mais alguns vultos dispersos, quando escutei passos chapinhando no gramado, a menos de um metro.
Ergui meus olhos preguiçosos e cansados na direção dos passos. Quão surpresa fiquei ao notar quem caminhava na direção do abrigo de árvores que formava algo parecido com uma cabana no centro do pátio sobre o gramado denso e pegajoso.
Bernard parecia ansioso, ou perturbado. Era difícil interpretar suas emoções ao longe, conforme ele se desviava cada vez mais para a acolhedora cabana verde. Demorei esse tempo para escutar meu coração bater furiosamente contra minhas costelas. Era uma reação ridiculamente idiota. Apenas um veterano – o responsável pela grande camada de estresse grudada em cada pensamento que me escapava – com prováveis dores de cabeça. Imaginei se os motivos que o levaram a interromper o almoço fossem tão justificáveis quanto os meus. Tentei manter meu corpo relaxado e meus batimentos sob controle, forçando a ânsia dos olhos a se reduzir e vagando o olhar para outra pequena cabana de árvores do lado oposto ao que ele se encontrava.
Claro que eu não consegui mudar a rota. Agindo inconsequentemente, como uma completa idiota, fechei o laptop e me levantei cuidadosamente, em movimentos de espiã. Não parei para pensar no que estava fazendo; se era somente uma distração, eu não saberia dizer. Não valia a importância iminente, era algo feito para o próprio benefício. Escondi meus cabelos no capuz e caminhei devagar em direção a Bernard, mal contendo a pulsação. Pretendia encontrá-lo ao acaso, dando a idéia de que estava tão perdida quanto ele. Mas eu nunca fora uma definição discreta. Meu blefe me entregaria em um momento ou outro.
Observei-o largar-se na relva, como se estivesse cansado da rotina. Seus cabelos escuros estavam molhados, fortalecendo o contraste com a brancura de sua pele. Era fácil perceber a mudança de sua expressão interferida pelo clima, mesmo a alguns metros de distância. Com os olhos fechados, as olheiras não se destacavam tanto na cavidade levemente roxa. Mas eu não poderia ver o azul de perto... Sempre haveria alguma desvantagem no modo como eu o admirava e o detestava em partes igualmente perturbadoras. O contato de seu corpo com a relva umedecida fez com que eu me contentasse basicamente em observá-lo. Ele parecia muito menos esgotado ou frio daquele jeito. Mas ele poderia voltar à superfície... A vantagem era a de que seus olhos estariam abertos, perceptíveis o bastante para me constranger.
Depois de alguns minutos o medo me venceu. Não seria satisfatório ser a principal suspeita de um encontro planejado. Minha gafe teria que se romper. Com um último olhar de despedida para o garoto estranho, voltei para o percurso que me levaria mais uma vez ao humor de espantar moscas."


Como já dissera um sábio, por hoje é só. Meu humor também não está cem por cento, o que espero curar com uma dose de café antes de dormir. Se alguém daí chegou até este final, peço que comente, critique, acuse, elogie, cumprimente... Enfim, uma simples opinião em um comentário, em qualquer lugar do empório. A Nani aqui agradece!
P.S.: Outro rápido agradecimento à minha fonte, Paramore e às músicas cantaroladas por uma colega de classe que ficaram na minha cabeça. Abraço, chaveirinho!


Tchau! (:

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Caixinha de Problemas

Em uma busca costumeira no fim de domingo, reencontrei uns velhos rascunhos de meu bebê pergaminho, datando do início da história. Reli todos eles, pensando em como era bom deixar os dedos correrem pelas teclas à toa, sem nenhum limite restrito de tempo e nenhuma censura que me impedisse de narrar o cotidiano de meus personagens. Pensando vez ou outra quando esbarrava nas falas "Caramba, eu escrevi mesmo isso?", ou "Nota T de Trasgo para este aqui." Um bom domingo.
Talvez esteja mais do que na hora de apresentar meu querido clã no empório. Não está aquela maravilha, coisa que qualquer rascunho não é, mas serve como ponto de partida. Uma boa introdução de maneiras esquisitas e encantadoras desses seres inventivos que existem para mim. Um diário dos Baudelaire.
Antes de mais nada, um PRÉ-script lembrando que a cidade natal da saga localiza-se em Derwentside, no Condado de Durhan. Qualquer modificação em posts anteriores é de total responsabilidade da autora aqui, de modo que seguirei relatando mais trechos do diário sempre que possível, bem como capítulos velhos e novos. Que sirva de aviso. (:
Postei um breve capítulo narrando Bernard há alguns dias atrás. Aqui o cap segue, junto de uma parte do rascunho que oficialmente apresenta meus vampiros.
Boa leitura!

1º Parte - O encontro

"A manhã permanecia acinzentada, com poucos focos de luz por entre as nuvens espessas, irradiando um alaranjado desbotado sobre as árvores e telhados, refletindo no ladrilho das ruas. Por elas eu andava em direção à estação de metrô mais próxima. Outro padrão a ser seguido metodicamente. Eu já não me preocupava em observar os movimentos das pessoas que seguiam pelo mesmo caminho, coisa que eu fizera infinitesimalmente na primeira semana. Eu costumava ficar sentado em um banco perto da fonte, ou em Elizabeth Carrow State Park, meio escondido entre as figueiras, fitando os ternos de risca de giz em homens sérios demais para se supor que faziam algo satisfatório, e os vestidos de lã escura em damas com aparência arrogante demais para se dizer que eram simpáticas.
Eu ficava fascinado. Com o passar do tempo, a nostalgia e o mesmo tipo de medo de ser o desconhecido começava a predominar em minhas feições quando eu saía na rua. A auto-estima era algo que precisava ser polido antes de ser conquistado.
A estação estava cheia àquela altura; executivos, bancários e universitários lotavam o piso de pedra que separava os trilhos da bancada central. Dirigi-me em direção aos bancos localizados após a entrada em formato de arco, aproveitando para escorar a cabeça na parede de tijolos atrás de mim e fechar os olhos mais um pouco, insensíveis a essa altura devido a tamanho cansaço. Deixei minha mente vagar por trabalhos feitos em cima da hora – um com o tema livre no qual eu desenhara um labirinto muito parecido com as ruas estreitas no final da avenida, por onde eu me perdera certa vez – provas remarcadas e ao provável período em que teria de enfrentar o mau-humor do professor de teorias.
Em pouco tempo o barulho nos trilhos me arrancou do estupor e eu já estava sentado nos últimos bancos do vagão. Um homem magricela que também usava terno, mas o escondia por uma longa capa de veludo negro me observou do alto com olhos semicerrados por alguns segundos, acabando por sentar-se na mesma fileira. Ignorei-o como fazia com todo mundo, vagando outros tantos minutos até a chegada na universidade.
Claire Norms University possuía um total assombroso de 40 mil alunos. Localizada na parte central de Derwentside, era ladeada por muros austeros que escondiam a verdadeira identidade da estrutura incrivelmente imensa. As árvores gigantes circundavam a parede que não permitia qualquer visão do espaço interior a alguém que cruzasse pelo lado de fora. A universidade se parecia muito com aqueles castelos góticos dos séculos passados, o que não me surpreendia, estando naquele lugar... E era a mais prestigiada da região, o que pouco me interessava. Atravessei os portões de ferro e alcancei o patamar das escadarias em direção ao grande saguão.
O transtorno matinal não estava tão tangível naquela segunda, pois todos por quem eu passava conservavam expressões sonolentas e apaziguadoras, um pouco rabugentas também. Como se ninguém tivesse muito assunto para por em pauta. Prossegui em direção às escadas circulares no corredor serpenteado, trancando meus bocejos dentro da boca e vasculhando minha pasta à procura do último trabalho. Perdi a conta de quantos bocejos tranquei e alguns deixei escapar, e de quantos degraus subi, mas o barulho era mais proeminente no terceiro andar.
O maldito papel não estava em lugar algum. Vasculhei mais atentamente a bagunça de minha mochila, arredando papéis para os cantos, afastando com um safanão os pacotinhos de jujuba perdidos e roçando o marcador de Hamlet, tudo isso conforme eu continuava me movendo à última sala. Então, sem aviso, com um baque que quase me derrubou no chão, bati de encontro a um estudante parado no meio do corredor.
Ergui a cabeça, pronto para reclamar de sua postura idiota, quando reconheci a veterana das aulas de Arte. Seu rosto inexpressivo me tirou o fôlego. Era algo do qual eu não estava acostumado a sentir. Mas era absolutamente impossível não sentir nada quando uma jovem que parecia feita de porcelana, tamanha brancura de sua pele, em contraste com cabelos flamejantes de mogno espelhando os olhos negros feito carvão e reluzindo nos lábios comprimidos e avermelhados te encarava.
Minha respiração pareceu congelar na garganta. Não somente por sua beleza absurda, mas pelo contato proeminente com o frio que senti emanar de sua pele; como se eu estivesse congelando junto de minha respiração. Sentia-me estranho enquanto não despregava o olhar de seu rosto, procurando inutilmente um pedido de desculpas que me libertasse da obstrução.
– Eu... me... desculpe – gaguejei inutilmente diante dela. O frio aumentava.
A jovem branca também não desviava o olhar. Era ridícula a suposição de que ela também se sentia aparvalhada como eu. Não tive chance de examinar melhor sua expressão, quando parecia que seus olhos me puxavam para aquele negrume sem saída. Eu queria poder soltar a língua e pedir que fosse embora. Ou, se a educação ainda estivesse presente nos meus genes, pedir licença para me afastar do buraco negro.
– Cecily? – chamou uma voz delicada de sino, muito distante.
A jovem demorou-se em seu fulgor nos meus olhos por um segundo, depois virou a cabeça para a voz. Eu, meio amortalhado, segui o movimento, deparando com outra jovem tão branca quanto. Deveriam ser irmãs, supus, ainda sentindo o oco reverberando em minha boca.
– Bom dia, cavalheiro – cumprimentou ela, relanceando os olhos intensamente verdes em minha direção. Seus cachos escuros contribuíam para a mesma beleza surreal que eu presenciava no caos do corredor. Era tão baixinha que por um momento repensei a idéia do parentesco.
Mas quem poderia ser igualmente lindo?
Que maneira mais estranha de cumprimentar alguém, pensei, atribuindo um mero aceno de cabeça em troca.
– Vamos – insistiu a outra, retirando a mão do bolso do casaco sobre o vestido de lã. Suas vestes pretas eram semelhantes, percebi quando enfim consegui examiná-la melhor sem me assustar.
Enquanto a pequena puxava sua mão, seus olhos voltaram aos meus com uma rapidez desconcertante. Eu fiquei paralisado no lugar até perdê-las de vista. Depois, muito lentamente, em meio a um tremor de frio que não tinha nada a ver com a brisa que entrava pela janela de vitral entreaberta, encontrei minha imagem no reflexo do vidro. O azul profundo de meus olhos estava totalmente elétrico."

2ºParte - Na mesa dos Baudelaire

"– Você poderia pensar duas vezes antes de cumprimentar alguém que não tenha cem anos.
– Não fiz nada desapropriado. Não considero errado cumprimentar quem quer que seja com educação, Davi.
Voltei meus olhos resignados para o prato intocado no intervalo do almoço. Os murmúrios do refeitório me atingiam com a intensidade de gritos em minha cabeça, algo que não era controlável nem estimulado por minha audição apurada. Era somente uma das várias formas de tentar compreender o que se passava através da cabeça de todos eles.
E isso era algo que eu não me disporia a fazer.
– Cecily se perdeu pela manhã – comentou a menina, escondendo um riso por entre os punhos.
Fingi não prestar atenção no comentário que acabara de ouvir e no breve rugido que se seguiu. Para alguém como Ava Elizabeth, a empolgação deveria ter um nível explícito e limitado. Mas é claro que ela não checava as regras como eu. Relanceei um olhar para a pequena, vendo que ela continuava a conter o riso como aquela criança recordando algo extremamente cômico. A curiosidade me dizia que eu perdera alguma coisa.
– Qual o motivo para o riso? – perguntei disciplinadamente, uma vez que não queria deixar transparecer minha dúvida.
Nenhuma das duas respondeu. Discretamente, voltei os olhos para a jovem sentada ao extremo da mesa, a dona do rugido. Cecily conservava a expressão séria e amarga de todos os dias, como que depreciando as próprias injúrias da vida. Seus olhos eram escuros demais na pele nevoenta em um contraste chocante com as vestes escuras.
Ela não arriscaria encontrar meu olhar. Não se quisesse partilhar seu mais novo segredo. O que era pouco provável vindo de alguém que abrigava somente a sombra na falta freqüente de voz.
– Justamente o que nos levou ao corredor onde minhas maneiras comportadas escaparam – respondeu Ava, a expressão inocente.
Franzi o cenho. Se o motivo da piada interna estivesse relacionado com algum veterano que sequer desconfiava de nossa aberração...
– Vocês não têm noção do perigo – falei entre dentes, encarando uma maçã e esperando que por ela se abrisse um furo devido à minha fúria repentina.
Uma fragrância almiscarada me cercou, diminuindo meus temores e dissipando minha irritação de modo muito suspeito para um ambiente abafado como o refeitório.
Olhei feio para Ava.
– Relaxe – murmurou ela, observando o pandemônio do lugar com olhos amplos, antes de voltar a se concentrar em seus beagles em formato de uma cabana abandonada. Ela adorava fazer artesanato com comida... A idéia me era repulsiva.
Um movimento rápido em minha visão periférica me fez voltar a atenção à Cecily. Seu corpo inteiro ficara rígido, suas mãos interromperam-se no coque dos longos cabelos flamejantes e seus olhos negros brilhavam em chamas.
Senti minhas entranhas ressuscitarem. Eu já vira aquele olhar.
Ava virou-se de imediato na direção da entrada e eu a acompanhei, mas não deduzi o que poderia ter de diferente ali para deixar Cecily alarmada. Fitei as mesas dispersas, tentando bloquear os assuntos que me encontravam no trajeto, cada qual ameaçando implodir minha concentração, deparando por fim com um casal adentrando as portas de corrida para o pátio interno.
Eles passaram por nossa mesa antes de desaparecerem. Não demonstravam ser realmente um casal; o jovem alto mantinha as mãos nos bolsos do casaco enquanto a pequena de vestido cinza trazia um livro em mãos, sua cabeça voltada na direção das palavras dele que pareciam ter certa dificuldade para sair.
Um comportamento de amigos. Então por que Cecily os encarava como se visse um inimigo?
Novamente a fragrância distinta enovelou meus pensamentos. Cecily escorou-se na cadeira, os olhos duros mirando o vazio. Sua respiração era difusa.
Uma palpitação em meu estômago me alertou do perigo iminente, se é que eu poderia chamar o cômodo oco dentro de mim de palpitação. Inclinei-me por sobre a mesa e esperei que ela voltasse ao normal, para que assim eu pudesse encontrar os seus olhos e descobrir o que a afligia agora.
Seria mesmo muito difícil ter um dia normal?
A resposta era muito óbvia. Alguém anormal não merecia a normalidade. Devia ser por isso que o desastre sempre ficava à espreita com um sorrisinho maldoso, esperando a oportunidade certa para acontecer.
Neste caso, o nome do recente desastre era Cecily Dominic Baudelaire.
Não chegou a durar um segundo. Ela uniu as extremidades do vestido preto em suas mãos e saiu de seu lugar, ignorando a bandeja intocada e os grampos de cabelo que jaziam ao lado. Seus passos não provocavam o menor ruído em meio às conversas, mas sua caminhada – descuidadamente apressada, como um vulto fugindo da luz – atraiu a atenção da maioria dos estudantes que aproveitavam os minutos normais de intervalo.
Pude sentir meus olhos faiscando enquanto se voltavam para o rosto de Ava.
Ela ainda mirava a porta de corrida como se tivesse acabado de ver uma pomba refletida na quietude do pátio nublado.
– Temos um problema – murmurou. O rosto de neve destacava de modo muito sutil a preocupação pela garota subitamente desvairada.
Eu queria enfiar aqueles grampos em minhas pupilas e parar de tentar descobrir por meu próprio meio o que diabos estava acontecendo.
– Ava – minha voz era uma súplica. Ela sabia o quanto me afligia ficar de fora enquanto o desastre subia no palco e encenava o que de pior já era presente em nossa rotina.
Ela soltou um suspiro e refletiu por meio segundo, imersa em pensamentos, quando seus densos olhos – verdes como florestas serpentinas – encontraram os meus.
E assim eu entendi. O amplo espelho de jade me abriu um mundo de terror e fantasia conforme eu captava vislumbres de épocas passadas, viajando em questão de segundos no tempo real e enfim percebendo o que causara a ira de Cecily. Por entre um círculo de sombras na imagem enevoada em sua mente, visualizei o garoto alto em um dos corredores da Claire Norms, e o reconheci tão rapidamente quanto me desviei de seu olhar.
– Você entende agora? – perguntou Ava, a voz trazendo um leve tremor de medo.
Sim, eu entendia. Tanto que desejava nunca ter entendido. Tinha de admitir que meu dom servisse para alguma coisa além de detectar problemas, mas isso ameaçava ser um problema. E, obviamente, era Cecily quem sempre trazia uma caixa cheia deles.
Como se já não bastasse ser uma aberração e conviver com aberrações por tempo indeterminado. Eu poderia conviver com ela tantas outras vidas e não aprovaria seu modo de ver as coisas. Como se tudo fosse obrigado a girar em torno de seu umbigo e as conseqüências que esperassem, ou partissem, deixando-a com sua glória.
Outra coisa que me era repulsiva demais para que eu conseguisse ficar calado.
– Eu os conheço – murmurei, desviando meus pensamentos do luxo perverso de Cecily para me concentrar em sua provável vítima. – Fazia algum tempo que eu não os via... Ele é um veterano de desenho industrial e ela é a bibliotecária...
Um chiado foi só o que ouvi em resposta.
Assimilei os fatos em silêncio, esperando que alguma solução aparecesse do nada e abrisse os olhos infantis de Cecily. Ironia das grandes, uma vez que infantil não se compactava com sua real idade. Porém, com uma mente compulsiva e determinada como a dela, nada de bom se poderia esperar.
E era justamente o que eu evitaria que chegasse. O ente do meio da família Baudelaire ameaçava nos colocar em perigo se estivesse planejando alguma trama no palácio de seu cérebro. Mais uma. Se dependesse de mim, faria de tudo para impedi-la. Sonhos malucos em mundos aterrorizantes eram de se esperar, mas não poderiam ser concretizados ali, no condado de outono da qual agora nos instalávamos.
Seria um risco a mais que ninguém gostaria de presenciar. Definitivamente, nenhum humano estava pronto para tal risco.
A mão delicada e fria de Ava cobriu a minha em um gesto de consolo. Senti a textura macia junto ao perfume floral que me acalmava pouco a pouco, procurando ao menos esquecer por mais algum tempo aquela trama que tanto nos era familiar, mas que nos esgotava com a agilidade que a estação se movia em meio às árvores.
Árvores essas que se sobrepujavam ao olhar denso e verde de minha querida Ava. Desisti de meus devaneios e ergui a cabeça para admirar seu rosto de porcelana, emoldurado por aqueles cachos fartos de boneca.
– Teremos bastante tempo para discutirmos o assunto mais tarde – tranqüilizou-me ela, afagando minha palma.
– Sim – concordei amargamente. – Temos todo o tempo de que precisamos.
Os olhos da pequena vampira sorriram para mim."

E então?
Pensando (não pela primeira vez), que uma boa história necessita de algumas boas doses de terror e encantamento. Logicamente (pelo mesmo motivo), meus vampiros possuem alguns dons maléficos herdados daquele primeiro povoado que se instalou no decorrer da guerra civil, nas redondezas da cidadezinha - ler Ironias ao Acaso. Algo como características passadas de geração para geração, modificadas com o passar do tempo infinito. Agradeço nessas horas a disponibilidade com que minha mente caótica trabalha até quando estou dormindo, criando esses artefatos indispensáveis à história. Uma nota aceitável dessa vez.
Uma troca de olhares, um indício de perigo farejado no ar, uma caixinha de problemas... Assim a narrativa continua seguindo seu curso em um banco estofado de metrô. Minha consciência alerta outra forma de descanso nesse frio acolhedor de domingo. Dormir para que se possa sonhar.
P.S.: Um obrigado à trilha diversificada de hoje, AVA, Iron & Wine e, novamente, Muse. Arquitetos de linhas.


Boa noite! ^^

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ironias ao Acaso


Notaram a cara nova (de novo) do meu cantinho? Muito mais atraente assim... ^^
Hoje voltei para casa - depois daquele lanche nada calórico (ironia) - ouvindo The Verve. Há quanto tempo Bittersweet Simphony não tocava no meu rádio... me fez clarear as ideias, repensar alguns fios sem lógica que não foram bem desenvolvidos. Minha noite superou minha tarde no curto passeio pela avenida pipocada de turistas insistentes. Me pergunto o motivo para os povos de fora em massa ainda não terem voltado para suas tocas... parece que a cidade encolhe à vista de tanta gente. Confere um brilho a mais na atmosfera branda do fim de verão.
Meu turno pelo Google Earth mudou minhas expectativas em um giro de 160 graus. Meu cenário épico de outono já não é mais o mesmo. Nada de grandes mudanças, apenas uns consertos aqui e ali. Não sou muito fã de mudanças abruptas... elas tiram a essência da questão. Modificam às apalpadelas aquilo que já havia sido registrado durante meses, ou anos. Mas às vezes é preciso seguí-las, adotá-las como um meio renovado de reescrita. E foi o que eu fiz. Mudei a localidade de todos os personagens com um simples clique no delete. Através desse novo endereço, compilei meu epílogo definitivo. A resenha que faltava para completar o roteiro do filme que passa seguidamente em minha cabeça.
Mas antes da narrativa, outra daquelas explicações obrigatórias para quem lê o que se é escrito nessa face de empório.
Aproveitei a deixa para criar um espaço com os títulos dos livros que já li e pretendo ler, ocasionalmente residindo na biblioteca da universidade local da saga, Claire Norms. Foi divertido editar partes de histórias que servem de inspiração, como aquele convite irrecusável ou aquele doce indispensável. O livro Café Resenha é da autoria de Jason Curtis Worden, o único filho de uma das famílias fundadoras do condado de Durhan, Inglaterra. Na época de sua juventude altamente provida de imaginações investigativas, seu passatempo era fuçar nos documentos de seu velho pai, enterrados sob a madeira oca do sótão. Diários relatando tempestades da guerra civil e, consequentemente, a chegada de povos nada comuns para as tradições locais do século XIX (o que ao pé da letra significa a chegada dos vampiros mais antigos da saga no condado pacato da velha Inglaterra). Anos mais tarde, quando tais vestígios preciosos das memórias foram esquecidos no mesmo sótão empoeirado, meu querido Jason tornou-se um famoso cineasta da Grande Londres, com o acréscimo da última herdeira dos Worden, sua filha Lauren. Os passatempos foram deixados de lado. Mas havia algo inquestionável para se cumprir.
Muito mais atraente assim (de novo). Aqui vai o epílogo...

"Condado de Durhan, 1987, Reino Unido. Residência dos Worden, sótão.

Anoitece. Na sincronia lenta e ritmada do vento, as copas das árvores curvam-se umas sobre as outras, como se cochichassem algum segredo diante da janela circular que range. Visão normalmente sinistra após a meia noite. As sombras resvalam em minha cama improvisada no sótão, onde seguidas vezes me embrulho em um grosso cobertor sobre tantos outros cobertores igualmente enxovalhados que formam um retângulo desproporcional ao tamanho de meu corpo.
Estamos na metade do outono, uma estação rigorosa para os europeus. E também cercada de mistérios. Circulam nas redondezas do distrito de Derwentside os mitos, de modo que os ouvintes nunca são capazes de desvendar a real intenção por trás dessas histórias narradas. Os habitantes sedentos por contos locais – como eu – fazem parte das diversas narrativas, acreditando realmente na credibilidade dos fatos, ocorridos há tanto tempo... Mas, como certa vez disseram os mais velhos, a sabedoria traz conseqüências irreversíveis, portanto muitos preferem somente sentar-se na roda e deixar os ouvidos vagarem para outros planos.
Obviamente, não sou como esses muitos.
Começaremos com uma apresentação. Sou o único filho da linhagem de uma das famílias mais renomadas de Durhan – de início um pequeno povoado com poucos moradores na área de baixa renda da Inglaterra, atualmente reconhecido como um apreciado monumento. Isso se deve em grande parte às construções vitorianas que se ultrapassaram o tempo, preservadas ao longo dos anos em um vasto cenário cinza, e aos atuais habitantes que pouco relatam suas histórias e muito comentam sobre os acontecimentos dos quais não lhe dizem respeito. Meu nome é Jason Curtis Worden, o rapaz incomunicável na maior parte do tempo que encontra a própria voz quando está sozinho, cercado de livros sobre histórias locais e desventuras familiares; heranças que nunca foram devidamente desbravadas. Bom, estou aqui para finalizar o serviço inacabado. Ou para recomeçá-lo, dependendo do ponto de vista.
É preciso deixar claro que este não é nenhum tipo de diário. Nada de documentos oficiais, segredos escondidos, confissões proibidas. Estas folhas não servem somente como um passatempo para alguém gravemente desprovido de sono em uma madrugada de domingo, mas também como uma prova de que se, algum dia outra pessoa pertencente à árvore genealógica dos Worden encontrá-las, saberá que essa história não foi passada em branco, como uma despedida breve após a guerra. Algumas décadas vividas, quando eu provavelmente estiver velho demais para me lembrar das mãos e dos olhos que acompanharam essa narrativa, passos pisarão nesse mesmo sótão que cheira a pinho, couro e páginas de livros. Outro par de mãos encontrará o vestígio de nossos antepassados e então o que restar do conto seguirá seu curso.
Os Worden complementam a origem dessa cidade tipicamente européia. Vista de fora, é comumente conhecida – e comentada pelos mesmos que preferem as histórias das quais não lhe dizem respeito – como uma família fora do padrão comum, se comparada com outras linhagens, o que aqui significa, no mínimo, o lar dos ingleses esquisitos. As marcas coloridas, camufladas no cinza. Por muito tempo fomos o ponto central dos burburinhos que circulavam pelas ruas, narrados como os entes desprovidos de riquezas, excluídos do patamar econômico, nível inferior na sociedade rigorosa daquela época. Eram tempos difíceis para os que aparentavam serem os menos influentes.
Haviam as contradições. Somente um verdadeiro Worden conhecia seus segredos nos padrões que deveriam ser seguidos. Uma família incomum que guardava em seu antro uma riqueza jamais vista ou compartilhada por outros nomes importantes na alta sociedade. A simples existência do segredo compelia nossos antepassados a ignorarem toda a discórdia e a rejeição do poder inquisidor europeu. Um verdadeiro Worden reconhecia seus princípios e lutava para defendê-los, não importavam os meios e extremos exigidos por tal causa. E, uma vez que cada membro da família se compelia em levar o segredo para o túmulo, qualquer ofensa ouvida era facilmente suportável.
Um legítimo Worden colocava-se sempre em perigo.
Como toda ação obtém uma reação, nosso caso não foi diferente. Descobri a resposta há algumas semanas atrás, em meio a uma faxina forçada nos aposentos da casa onde moro com meus pais. Uma simples organização nos documentos de meu pai revelaram a causa que mudara minha vida abruptamente, se não permanentemente. Diários guardados em gavetas embutidas e madeiras ocas, escritos por Timothy Neil Worden desde seus dezenove anos, minha idade exata. Verdadeiras relíquias que narravam as desventuras de um jovem em sua transição para adulto, sua passagem pelos tempos nublados de guerra. Seu ponto de vista sobre ambas as batalhas que deixariam conseqüências marcantes nos próximos anos. O relato completo da miscigenação que envolveria dois mundos completamente diferentes e ameaçadores um ao outro.
O mundo dos humanos, dos oprimidos durante o longo período torturante da guerra civil.
O mundo dos verdadeiros possuidores do trono, da supremacia que liderava os povos responsáveis pela exterminação quase completa dos habitantes da região.
A batalha interminável entre seres humanos e criaturas amaldiçoadas que durou meio século.
Ok. Sou apenas um humano, afinal de contas. Vítima de meu próprio entusiasmo. É difícil contê-lo em certos pontos da narrativa. No decorrer das próximas linhas, vou tentar ser objetivo, sem incluir observações fantasiosas que possam assustar as mentes mais fracas. Este é apenas o rascunho desenvolvido do que realmente aconteceu. Do que me foi relatado quando eu ainda usava fraldas e tinha medo de adormecer sozinho. O motivo para a existência de minha família... E as contradições que fizeram com que todos os moradores deploráveis repensassem suas próprias histórias e deixassem de se preocupar com o legado que unicamente nos diz respeito.
Nunca fomos ameaçadores. Apesar de todo o resto que nos condenou a esta causa perdida, jamais fomos motivo de antipatia àqueles que não se intimidavam com nossa aparência. Sempre comandados por dois pares de olhos – o da razão, que nos compelia a trancafiar o segredo que revelava o que realmente éramos; e o do coração, que nos lembrava dos motivos opostos à justa causa, nos guiando aos princípios de amor, união e proteção entre os familiares e amigos mais íntimos. Obviamente, nenhum deles partilhou de nossa real confidência, para que não corrêssemos o risco de sermos descobertos, e para não colocá-los no mesmo risco do qual estávamos envolvidos. Era um fardo que não deveria ser passado adiante.
Naturalmente, a obsessão em não nos revelarmos e não confiarmos nem mesmo em nossas sombras tinha um motivo mais válido, o que me traz de volta à minha súbita empolgação.
Um verdadeiro conto de terror imortalizado no coração dos Worden, guardiões do segredo da batalha. Pode-se dizer que somos os únicos que sobreviveram para continuar narrando esse episódio épico de Durhan. Curiosamente, o único lugar que guarda os escombros do conflito surreal – do quais os relatos de Timothy ainda permanecem sob a placa de madeira oca – localiza-se exatamente abaixo deste sótão. Na escada circular a oeste, onde tempos chuvosos proporcionam a ocasião perfeita para uma visita no vasto bosque aos fundos da pequena casa, antiga morada de outra família tão poderosa e magnificente quanto à que pertenço. Habitantes cuja longa existência deve-se às nossas palavras cuidadosamente bifurcadas atrás dos dentes.
A família cujo segredo nos pertence.
Uma família de vampiros protegida pelos guardiões.
Então surge a ironia. Quão tolo um garoto pode ser em momentos raros de insanidade. Apenas uma palavra solta e todo o resto estarão perdidos para sempre. A madrugada estendeu-se por tempo demais, e com isso minhas reações atingiram o auge proibido. Limite restrito. Barreiras lacradas.
Um segredo, afinal de contas. Que não deve ser pronunciado sem permissão.
A não ser que você seja um bebedor de sangue cuja própria vida não merece ser anunciada aos quatro ventos.
Sou o último guardião dos Worden. Ainda me resta uma última missão a ser cumprida. Aqui fica mais um relato incompleto sobre uma causa perdida que nunca teve um fim.
Que, pelo contrário, está prestes a começar."



E aqui também termina o relato de um de meus personagens preferidos. Mais algumas horas indispensáveis de sono e voltarei ao empório, talvez para visitar a biblioteca.
P.S.:Quem diria, além do The Verve eu escutei Coldplay. Coisa rara em minhas trilhas... Ao que parece, eles ajudaram.




Boa noite! (:


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Tea Party. Do ya wanna come?

"As grandes coisas não são feitas por impulso, mas através de uma série de pequenas coisas acumuladas."

Grande preguiça nesta sexta-feira. Para não passar em branco, decidi resgatar um antigo post, escrito há algumas noites atrás, sem nenhuma graça. O que talvez explique a fuga da própria graça para o país de minha crônica. Dedicado agora para alguns amigos de rostos tristes que passaram por mim hoje. Vou me lembrar de convidá-los a um passeio para este lugar, meninos.

"Foi assim que acabei redescobrindo uma criança adormecida dentro de mim. Aquela criança que passou a maior parte dos últimos dezoito anos dormindo no sótão acima do meu quarto, imobilizada em um sono profundo que parecia durar uma eternidade em apenas um segundo.
Um ato impulsivo de curiosidade compulsiva. Foi desse modo que criei coragem para subir os degraus e abrir a porta, andar devagarinho na direção da menina de olhos fechados na perumba. Eu quase não estive ali nos últimos anos. Mais por medo do que por falta de interesse. Há algo mágico naqueles degraus que sempre me intimidou.
Fuçar o território do chão empoeirado na procura desesperada por alguma lembrança soterrada enquanto ela permanecia em um mundo mágico revelado por detrás das pálpebras. Seu ronronar era reconfortante, acolhedor... tarnsmitia coragem. Continuei minha busca pelos cantos, em silêncio gritante. O coração pulava descompassado, como se soubesse de minha traquinagem e discordasse dela.
Onde estariam as memórias? Onde estariam os recheios vividos que preencheriam as lacunas em branco? As historinhas das quais eu recordava dos velhos tempos em que podia brincar sem culpa, cair do balanço, pular na cama da mãe e do pai em meio aos risos... será que a menina os havia escondido de mim, como uma criancinha perversa? Seria muito errado despertá-la agora?
Uma resposta pairava acima de todas as perguntas não verbalizadas no escuro. A menina não precisava ser despertada. Ela começava a acordar lentamente em algum lugar dentro de mim, os olhos preguiçosos, de tanto adormecerem, apalpando a superfície gelada de meu peito, procurando algum sinal que a tragasse de volta para o Mundo das Maravilhas.
Um mundo sem dor.
Eu a havia cutucado sem querer durante a busca, tropeçando em um chapéu enxovalhado que residia no chão, de boca para cima. Grande, misterioso... convidativo. O ronronar cessara. Meus passos levaram minhas mãos ao objeto de estranha luz no fundo; as profundezas do chapéu pareciam intermináveis. Eu tinha medo de baixar a cabeça e cair no mesmo mundo onde morava a menina que eu despertara por acaso. Eu não queria ter de cair lá dentro. Eu não gostaria de sonhar... para quê?
O chapéu guardava minhas lembranças em seu fundo sem fim.
Era um convite irrecusável. Uma tentativa de me resgatar do meu próprio mundo sem graça e tão comum, uma chance para desbravar minhas próprias experiências do passado. Um túnel do tempo em um chapéu maluco. E se eu não pudesse voltar? E se eu estivesse condenada a permanecer naquela terra para sempre, cercada de criaturas incomuns e encantadoras que me fariam lembrar o que eu tinha esquecido? Eu estava com medo? Onde estava meu senso de aventura?
A falta de espírito me fez sentir raiva. Eu não era daquelas que arriscavam o que pudessem sem se dar ao trabalho de pensar em um motivo que fosse idiota o bastante para ser justificável. Sempre contando os minutos e segundos, em um ritmo constante de tempo. Tic-tac, tic-tac, tic-tac... Sem graça como as coisas sem graça desse mundo. Eu agora queria algo com graça. Algo para poder contar, relembrar e guardar, sem nunca se deixar perder. Sem mais tic-tacs.
Minha cabeça curvava-se para a passagem. Esquecendo da traquinagem e do barulho agudo de meu coração agitado, ajoelhei-me no chão e vi a mim mesma no reflexo de uma lembrança. Opaca, mas única. Meus tempos de criança. Os olhos sorriram, marotos, convidando-me outra vez.
Os olhos da menina que esperava, ansiosa, para me levar consigo ao seu lar. Para me apresentar ao dono do chapéu velho que guardava protetoramente minhas recordações mais preciosas de um tempo que na verdade nunca fora esquecido, mas que ficara adormecido por tempo demais.
Exatamente como a menina que estendia a mão para mim, esperando, com seus olhos sonhadores.
Meus olhos. "

P.S.: Texto inspirado em Alice in Wonderland, meu conto favorito de todos os tempos. Dedicado àqueles que ainda estão à procura de suas lembranças mais felizes. Elas podem estar nos lugares mais improváveis... como um sótão, por exemplo.
Um abraço especial às velhas amigas do sul. Daff, Lu e Dani, suas marotices em uma madrugada de sábado me fizeram sentir como se eu estivesse aí com vocês. Como uma Festa do Chá. Saudades.
Agradecimento rápido à minha trilha. Sara Bareilles e, óbvio, aos vídeos de Alice que deixaram a noite um pouco mais feliz...





Até a vista! (: