domingo, 28 de fevereiro de 2010

Caixinha de Problemas

Em uma busca costumeira no fim de domingo, reencontrei uns velhos rascunhos de meu bebê pergaminho, datando do início da história. Reli todos eles, pensando em como era bom deixar os dedos correrem pelas teclas à toa, sem nenhum limite restrito de tempo e nenhuma censura que me impedisse de narrar o cotidiano de meus personagens. Pensando vez ou outra quando esbarrava nas falas "Caramba, eu escrevi mesmo isso?", ou "Nota T de Trasgo para este aqui." Um bom domingo.
Talvez esteja mais do que na hora de apresentar meu querido clã no empório. Não está aquela maravilha, coisa que qualquer rascunho não é, mas serve como ponto de partida. Uma boa introdução de maneiras esquisitas e encantadoras desses seres inventivos que existem para mim. Um diário dos Baudelaire.
Antes de mais nada, um PRÉ-script lembrando que a cidade natal da saga localiza-se em Derwentside, no Condado de Durhan. Qualquer modificação em posts anteriores é de total responsabilidade da autora aqui, de modo que seguirei relatando mais trechos do diário sempre que possível, bem como capítulos velhos e novos. Que sirva de aviso. (:
Postei um breve capítulo narrando Bernard há alguns dias atrás. Aqui o cap segue, junto de uma parte do rascunho que oficialmente apresenta meus vampiros.
Boa leitura!

1º Parte - O encontro

"A manhã permanecia acinzentada, com poucos focos de luz por entre as nuvens espessas, irradiando um alaranjado desbotado sobre as árvores e telhados, refletindo no ladrilho das ruas. Por elas eu andava em direção à estação de metrô mais próxima. Outro padrão a ser seguido metodicamente. Eu já não me preocupava em observar os movimentos das pessoas que seguiam pelo mesmo caminho, coisa que eu fizera infinitesimalmente na primeira semana. Eu costumava ficar sentado em um banco perto da fonte, ou em Elizabeth Carrow State Park, meio escondido entre as figueiras, fitando os ternos de risca de giz em homens sérios demais para se supor que faziam algo satisfatório, e os vestidos de lã escura em damas com aparência arrogante demais para se dizer que eram simpáticas.
Eu ficava fascinado. Com o passar do tempo, a nostalgia e o mesmo tipo de medo de ser o desconhecido começava a predominar em minhas feições quando eu saía na rua. A auto-estima era algo que precisava ser polido antes de ser conquistado.
A estação estava cheia àquela altura; executivos, bancários e universitários lotavam o piso de pedra que separava os trilhos da bancada central. Dirigi-me em direção aos bancos localizados após a entrada em formato de arco, aproveitando para escorar a cabeça na parede de tijolos atrás de mim e fechar os olhos mais um pouco, insensíveis a essa altura devido a tamanho cansaço. Deixei minha mente vagar por trabalhos feitos em cima da hora – um com o tema livre no qual eu desenhara um labirinto muito parecido com as ruas estreitas no final da avenida, por onde eu me perdera certa vez – provas remarcadas e ao provável período em que teria de enfrentar o mau-humor do professor de teorias.
Em pouco tempo o barulho nos trilhos me arrancou do estupor e eu já estava sentado nos últimos bancos do vagão. Um homem magricela que também usava terno, mas o escondia por uma longa capa de veludo negro me observou do alto com olhos semicerrados por alguns segundos, acabando por sentar-se na mesma fileira. Ignorei-o como fazia com todo mundo, vagando outros tantos minutos até a chegada na universidade.
Claire Norms University possuía um total assombroso de 40 mil alunos. Localizada na parte central de Derwentside, era ladeada por muros austeros que escondiam a verdadeira identidade da estrutura incrivelmente imensa. As árvores gigantes circundavam a parede que não permitia qualquer visão do espaço interior a alguém que cruzasse pelo lado de fora. A universidade se parecia muito com aqueles castelos góticos dos séculos passados, o que não me surpreendia, estando naquele lugar... E era a mais prestigiada da região, o que pouco me interessava. Atravessei os portões de ferro e alcancei o patamar das escadarias em direção ao grande saguão.
O transtorno matinal não estava tão tangível naquela segunda, pois todos por quem eu passava conservavam expressões sonolentas e apaziguadoras, um pouco rabugentas também. Como se ninguém tivesse muito assunto para por em pauta. Prossegui em direção às escadas circulares no corredor serpenteado, trancando meus bocejos dentro da boca e vasculhando minha pasta à procura do último trabalho. Perdi a conta de quantos bocejos tranquei e alguns deixei escapar, e de quantos degraus subi, mas o barulho era mais proeminente no terceiro andar.
O maldito papel não estava em lugar algum. Vasculhei mais atentamente a bagunça de minha mochila, arredando papéis para os cantos, afastando com um safanão os pacotinhos de jujuba perdidos e roçando o marcador de Hamlet, tudo isso conforme eu continuava me movendo à última sala. Então, sem aviso, com um baque que quase me derrubou no chão, bati de encontro a um estudante parado no meio do corredor.
Ergui a cabeça, pronto para reclamar de sua postura idiota, quando reconheci a veterana das aulas de Arte. Seu rosto inexpressivo me tirou o fôlego. Era algo do qual eu não estava acostumado a sentir. Mas era absolutamente impossível não sentir nada quando uma jovem que parecia feita de porcelana, tamanha brancura de sua pele, em contraste com cabelos flamejantes de mogno espelhando os olhos negros feito carvão e reluzindo nos lábios comprimidos e avermelhados te encarava.
Minha respiração pareceu congelar na garganta. Não somente por sua beleza absurda, mas pelo contato proeminente com o frio que senti emanar de sua pele; como se eu estivesse congelando junto de minha respiração. Sentia-me estranho enquanto não despregava o olhar de seu rosto, procurando inutilmente um pedido de desculpas que me libertasse da obstrução.
– Eu... me... desculpe – gaguejei inutilmente diante dela. O frio aumentava.
A jovem branca também não desviava o olhar. Era ridícula a suposição de que ela também se sentia aparvalhada como eu. Não tive chance de examinar melhor sua expressão, quando parecia que seus olhos me puxavam para aquele negrume sem saída. Eu queria poder soltar a língua e pedir que fosse embora. Ou, se a educação ainda estivesse presente nos meus genes, pedir licença para me afastar do buraco negro.
– Cecily? – chamou uma voz delicada de sino, muito distante.
A jovem demorou-se em seu fulgor nos meus olhos por um segundo, depois virou a cabeça para a voz. Eu, meio amortalhado, segui o movimento, deparando com outra jovem tão branca quanto. Deveriam ser irmãs, supus, ainda sentindo o oco reverberando em minha boca.
– Bom dia, cavalheiro – cumprimentou ela, relanceando os olhos intensamente verdes em minha direção. Seus cachos escuros contribuíam para a mesma beleza surreal que eu presenciava no caos do corredor. Era tão baixinha que por um momento repensei a idéia do parentesco.
Mas quem poderia ser igualmente lindo?
Que maneira mais estranha de cumprimentar alguém, pensei, atribuindo um mero aceno de cabeça em troca.
– Vamos – insistiu a outra, retirando a mão do bolso do casaco sobre o vestido de lã. Suas vestes pretas eram semelhantes, percebi quando enfim consegui examiná-la melhor sem me assustar.
Enquanto a pequena puxava sua mão, seus olhos voltaram aos meus com uma rapidez desconcertante. Eu fiquei paralisado no lugar até perdê-las de vista. Depois, muito lentamente, em meio a um tremor de frio que não tinha nada a ver com a brisa que entrava pela janela de vitral entreaberta, encontrei minha imagem no reflexo do vidro. O azul profundo de meus olhos estava totalmente elétrico."

2ºParte - Na mesa dos Baudelaire

"– Você poderia pensar duas vezes antes de cumprimentar alguém que não tenha cem anos.
– Não fiz nada desapropriado. Não considero errado cumprimentar quem quer que seja com educação, Davi.
Voltei meus olhos resignados para o prato intocado no intervalo do almoço. Os murmúrios do refeitório me atingiam com a intensidade de gritos em minha cabeça, algo que não era controlável nem estimulado por minha audição apurada. Era somente uma das várias formas de tentar compreender o que se passava através da cabeça de todos eles.
E isso era algo que eu não me disporia a fazer.
– Cecily se perdeu pela manhã – comentou a menina, escondendo um riso por entre os punhos.
Fingi não prestar atenção no comentário que acabara de ouvir e no breve rugido que se seguiu. Para alguém como Ava Elizabeth, a empolgação deveria ter um nível explícito e limitado. Mas é claro que ela não checava as regras como eu. Relanceei um olhar para a pequena, vendo que ela continuava a conter o riso como aquela criança recordando algo extremamente cômico. A curiosidade me dizia que eu perdera alguma coisa.
– Qual o motivo para o riso? – perguntei disciplinadamente, uma vez que não queria deixar transparecer minha dúvida.
Nenhuma das duas respondeu. Discretamente, voltei os olhos para a jovem sentada ao extremo da mesa, a dona do rugido. Cecily conservava a expressão séria e amarga de todos os dias, como que depreciando as próprias injúrias da vida. Seus olhos eram escuros demais na pele nevoenta em um contraste chocante com as vestes escuras.
Ela não arriscaria encontrar meu olhar. Não se quisesse partilhar seu mais novo segredo. O que era pouco provável vindo de alguém que abrigava somente a sombra na falta freqüente de voz.
– Justamente o que nos levou ao corredor onde minhas maneiras comportadas escaparam – respondeu Ava, a expressão inocente.
Franzi o cenho. Se o motivo da piada interna estivesse relacionado com algum veterano que sequer desconfiava de nossa aberração...
– Vocês não têm noção do perigo – falei entre dentes, encarando uma maçã e esperando que por ela se abrisse um furo devido à minha fúria repentina.
Uma fragrância almiscarada me cercou, diminuindo meus temores e dissipando minha irritação de modo muito suspeito para um ambiente abafado como o refeitório.
Olhei feio para Ava.
– Relaxe – murmurou ela, observando o pandemônio do lugar com olhos amplos, antes de voltar a se concentrar em seus beagles em formato de uma cabana abandonada. Ela adorava fazer artesanato com comida... A idéia me era repulsiva.
Um movimento rápido em minha visão periférica me fez voltar a atenção à Cecily. Seu corpo inteiro ficara rígido, suas mãos interromperam-se no coque dos longos cabelos flamejantes e seus olhos negros brilhavam em chamas.
Senti minhas entranhas ressuscitarem. Eu já vira aquele olhar.
Ava virou-se de imediato na direção da entrada e eu a acompanhei, mas não deduzi o que poderia ter de diferente ali para deixar Cecily alarmada. Fitei as mesas dispersas, tentando bloquear os assuntos que me encontravam no trajeto, cada qual ameaçando implodir minha concentração, deparando por fim com um casal adentrando as portas de corrida para o pátio interno.
Eles passaram por nossa mesa antes de desaparecerem. Não demonstravam ser realmente um casal; o jovem alto mantinha as mãos nos bolsos do casaco enquanto a pequena de vestido cinza trazia um livro em mãos, sua cabeça voltada na direção das palavras dele que pareciam ter certa dificuldade para sair.
Um comportamento de amigos. Então por que Cecily os encarava como se visse um inimigo?
Novamente a fragrância distinta enovelou meus pensamentos. Cecily escorou-se na cadeira, os olhos duros mirando o vazio. Sua respiração era difusa.
Uma palpitação em meu estômago me alertou do perigo iminente, se é que eu poderia chamar o cômodo oco dentro de mim de palpitação. Inclinei-me por sobre a mesa e esperei que ela voltasse ao normal, para que assim eu pudesse encontrar os seus olhos e descobrir o que a afligia agora.
Seria mesmo muito difícil ter um dia normal?
A resposta era muito óbvia. Alguém anormal não merecia a normalidade. Devia ser por isso que o desastre sempre ficava à espreita com um sorrisinho maldoso, esperando a oportunidade certa para acontecer.
Neste caso, o nome do recente desastre era Cecily Dominic Baudelaire.
Não chegou a durar um segundo. Ela uniu as extremidades do vestido preto em suas mãos e saiu de seu lugar, ignorando a bandeja intocada e os grampos de cabelo que jaziam ao lado. Seus passos não provocavam o menor ruído em meio às conversas, mas sua caminhada – descuidadamente apressada, como um vulto fugindo da luz – atraiu a atenção da maioria dos estudantes que aproveitavam os minutos normais de intervalo.
Pude sentir meus olhos faiscando enquanto se voltavam para o rosto de Ava.
Ela ainda mirava a porta de corrida como se tivesse acabado de ver uma pomba refletida na quietude do pátio nublado.
– Temos um problema – murmurou. O rosto de neve destacava de modo muito sutil a preocupação pela garota subitamente desvairada.
Eu queria enfiar aqueles grampos em minhas pupilas e parar de tentar descobrir por meu próprio meio o que diabos estava acontecendo.
– Ava – minha voz era uma súplica. Ela sabia o quanto me afligia ficar de fora enquanto o desastre subia no palco e encenava o que de pior já era presente em nossa rotina.
Ela soltou um suspiro e refletiu por meio segundo, imersa em pensamentos, quando seus densos olhos – verdes como florestas serpentinas – encontraram os meus.
E assim eu entendi. O amplo espelho de jade me abriu um mundo de terror e fantasia conforme eu captava vislumbres de épocas passadas, viajando em questão de segundos no tempo real e enfim percebendo o que causara a ira de Cecily. Por entre um círculo de sombras na imagem enevoada em sua mente, visualizei o garoto alto em um dos corredores da Claire Norms, e o reconheci tão rapidamente quanto me desviei de seu olhar.
– Você entende agora? – perguntou Ava, a voz trazendo um leve tremor de medo.
Sim, eu entendia. Tanto que desejava nunca ter entendido. Tinha de admitir que meu dom servisse para alguma coisa além de detectar problemas, mas isso ameaçava ser um problema. E, obviamente, era Cecily quem sempre trazia uma caixa cheia deles.
Como se já não bastasse ser uma aberração e conviver com aberrações por tempo indeterminado. Eu poderia conviver com ela tantas outras vidas e não aprovaria seu modo de ver as coisas. Como se tudo fosse obrigado a girar em torno de seu umbigo e as conseqüências que esperassem, ou partissem, deixando-a com sua glória.
Outra coisa que me era repulsiva demais para que eu conseguisse ficar calado.
– Eu os conheço – murmurei, desviando meus pensamentos do luxo perverso de Cecily para me concentrar em sua provável vítima. – Fazia algum tempo que eu não os via... Ele é um veterano de desenho industrial e ela é a bibliotecária...
Um chiado foi só o que ouvi em resposta.
Assimilei os fatos em silêncio, esperando que alguma solução aparecesse do nada e abrisse os olhos infantis de Cecily. Ironia das grandes, uma vez que infantil não se compactava com sua real idade. Porém, com uma mente compulsiva e determinada como a dela, nada de bom se poderia esperar.
E era justamente o que eu evitaria que chegasse. O ente do meio da família Baudelaire ameaçava nos colocar em perigo se estivesse planejando alguma trama no palácio de seu cérebro. Mais uma. Se dependesse de mim, faria de tudo para impedi-la. Sonhos malucos em mundos aterrorizantes eram de se esperar, mas não poderiam ser concretizados ali, no condado de outono da qual agora nos instalávamos.
Seria um risco a mais que ninguém gostaria de presenciar. Definitivamente, nenhum humano estava pronto para tal risco.
A mão delicada e fria de Ava cobriu a minha em um gesto de consolo. Senti a textura macia junto ao perfume floral que me acalmava pouco a pouco, procurando ao menos esquecer por mais algum tempo aquela trama que tanto nos era familiar, mas que nos esgotava com a agilidade que a estação se movia em meio às árvores.
Árvores essas que se sobrepujavam ao olhar denso e verde de minha querida Ava. Desisti de meus devaneios e ergui a cabeça para admirar seu rosto de porcelana, emoldurado por aqueles cachos fartos de boneca.
– Teremos bastante tempo para discutirmos o assunto mais tarde – tranqüilizou-me ela, afagando minha palma.
– Sim – concordei amargamente. – Temos todo o tempo de que precisamos.
Os olhos da pequena vampira sorriram para mim."

E então?
Pensando (não pela primeira vez), que uma boa história necessita de algumas boas doses de terror e encantamento. Logicamente (pelo mesmo motivo), meus vampiros possuem alguns dons maléficos herdados daquele primeiro povoado que se instalou no decorrer da guerra civil, nas redondezas da cidadezinha - ler Ironias ao Acaso. Algo como características passadas de geração para geração, modificadas com o passar do tempo infinito. Agradeço nessas horas a disponibilidade com que minha mente caótica trabalha até quando estou dormindo, criando esses artefatos indispensáveis à história. Uma nota aceitável dessa vez.
Uma troca de olhares, um indício de perigo farejado no ar, uma caixinha de problemas... Assim a narrativa continua seguindo seu curso em um banco estofado de metrô. Minha consciência alerta outra forma de descanso nesse frio acolhedor de domingo. Dormir para que se possa sonhar.
P.S.: Um obrigado à trilha diversificada de hoje, AVA, Iron & Wine e, novamente, Muse. Arquitetos de linhas.


Boa noite! ^^

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