Crônicas

"Se conheceram mês passado, quando as folhas, despencando em aroma agridoce, marcavam o início de Outono. Viviam no mesmo condado, moravam na mesma rua, se cruzavam todos os dias. No entanto, eram elementos diferentes. Fogo e gelo. Água e terra. Se contradiziam. Não combinavam.
Tampouco se conheciam realmente.
Ele, um aventureiro. Daquele tipo plebeu que liga a ingnição e leva as estradas sem fim como um estilo único de vida. Nada a que se amarrar, nada a perder. Tudo a que se arriscar. Seu nome era Joe, conhecido como o Pirata das Rodovias. Não que fosse um jovem mau. Mas suas pretenções eram estranhas aos demais olhos. Um homem sem correntes.
Ela, uma sonhadora. Daquele tipo donzela de saia puída e tênis esfarrapados, sentada ao console do piano. Nada de saltos, nada muito complicado. Tudo a que se esforçar. Seu nome era Dill, conhecida como a Dama das Notas. Não que fosse uma jovem tola. Mas seus propósitos eram incompreensíveis às demais mentes. Uma mulher presa na fantasia.
No quesito sentimental da história toda, mais um ponto entre eles não se entrelaçava. Não havia pretextos nele que o fizesse partir à busca de um amor que pudesse satisfazê-lo. Alguém que não se importasse em atravessar os continentes em uma vida suburbana e instável. Alguém que o completasse devidamente; navio e capitão. Sem falhas.
Por outro lado, não havia dúvidas nela que a fizesse esperar por um amor puramente verdadeiro. Alguém que gostasse da sincronia de seus dedos sobre as teclas do piano no embalo estável. Alguém que a respeitasse fielmente; melodia e composição. Sem falhas.
Chovia. Os abajures eram desligados, os cafés eram preparados. Metodicamente. Não havia sinais de que os raios de sol rasgariam a superfície das nuvens. Os passos se apressavam em ambos os corredores. Os caminhos a serem tomados os conduziriam à mesma passagem de sempre. Era possível imaginar a disposição dos olhares em cada face. O senso de liberdade em uma nova paisagem. O senso de aclamação em um novo palco. Portas trancadas.
Um passo em falso.
O guarda-chuva era necessário à ela. Três quarteirões a caminho do teatro. Podia-se até reconhecer cada ladrilho da calçada. Seus dedos ondulavam notas em meio ao sussurro frio da brisa. Seguia-se assim por todo o trajeto. Ela precisava encontrar a harmonia certa. Mais um movimento na brisa. Nada. Outro passo no ladrilho. E as notas lhe escapavam, desafinando no final. Como se estivessem repousando à distância, onde seus dedos não pudessem trazê-las de volta. Por fim, ela desistiu. Deixou que somente o inconsciente a conduzisse. Descansou os nós, pensou remotamente em fechar os olhos. Queria sentir-se leve.
Ao menos uma vez.
Pelo lado oposto, ele traçava sua rota sob os chuviscos. Não era preciso um guarda-chuva quando não se sabia quanto tempo seria gasto. Seus olhos afiados reconheciam as folhas dispersas ao chão, imaginando cenários. Seguia-se assim por todo o trajeto. E nada de novo surgia. Se apagava no final. Como se não houvesse uma única cor que se distinguisse do resto, uma nota para estabilizar a harmonia quebrada. Por fim, ele desistiu. Permitiu que o imaginário o conduzisse. Abandonou os cenários ao fechar os olhos. Queria ter algo a que se prender.
Ao menos uma primeira vez.
Um silvo no ar declarou o choque da colisão. Sutil e intenso ao mesmo tempo, em um só movimento errado. Os dois pares de olhos se abriram. Se avaliaram. Se descreveram. E então se reconheceram.
Uma brecha nos dias, onde as folhas agridoce cobriam os ladrilhos. A harmonia das notas repousada em um cenário de novas cores. Um espaço na mesmice, sem falhas. Sem vozes. Elementos diferentes que não combinavam; se completavam nos quesitos do resto da história.
Chovia. A ingnição era desligada, a música era preparada. Docemente. Não havia sinais de que os raios de sol seriam impedidos de perfurarem a superfície das nuvens. Os passos se interromperam em ambos os lados. Os caminhos tomados os conduziram à mesma passagem de sempre. Era possível imaginar a disposição dos olhares em cada face. Sensos agora iguais. Portas abertas.
Pirata das Rodovias de mãos dadas com Dama das Notas.
Enfim eles se conheciam realmente."