terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Feche os olhos. Faça um pedido... ou muitos.


Descobri um blog bem legal hoje pela manhã. Um blog que descrevia todas as vontades, desde as mais absurdas até as mais coerentes. Me libertou um pouco da mesma sensação de todas as manhãs sozinha em minha casa. Bom, quase sozinha, dando pela presença de duas criaturinhas mais novas com o mesmo sangue que passeia por minhas veias e artérias. Pequenos irmãos chatos.
Decidi "roubar" algumas frases e colocá-las aqui, antes de seguir narrando meu bebê. Bom proveito para aqueles que esbarrarem neste post. (=

"Eu queria...
Resgatar algumas sensações adolescentes;
Voltar a escrever coisas que eu sinto de verdade;
Experimentar momentos de calma;
Adquirir hábitos exóticos;
Andar de papel e caneta;
Visitar uma perfumaria;
Poder dar umas mexidas no meu mapa astral;
Ficar aqui escondida por uns dias;
Um trailer pra viajar por aí;
Inspirar uma música de amor;
Envelhecer com dignidade;
Ter coragem de ir sozinha para meu sítio;
Uma Festa do Chá com o Chapeleiro Maluco;
Que o fecho da correntinha nunca andasse;
Que as rosas vermelhas caíssem em desuso;
Ser mais contemplativa;
Que não chovesse tão forte assim quando tô sozinha em casa;
Que conversas difíceis pelo menos acontecessem no sol;
Ser altamente desapegada;
Ser jardineira;
Uma vida bem pacata!
Sempre fazer falta;
Deixar de ver as partes chatas;
Transmitir tranquilidade;
Me motivar com aspas;
Viver de brisa;
Novos horizontes para 2010..."

Nada tão exigente assim.
Há alguns meses atrás, me diverti escrevendo capítulos de meus personagens. Uma espécie de apresentação para cada um, seus prós e contras, seus medos, seus sentimentos. Toda vez que leio é como se eu soubesse que eles realmente existem, ou que são pessoas melhores do que muitos de carne e osso que existem por aí. Pequenas partes de mim resgatadas em seus gestos.
Eu queria... que eles existissem de verdade.

1º Parte - Bernard, meu galã feito sob medida.

Meus olhos soterrados pelo cansaço de repente se abriram para a claridade repentina do quarto. Eu não havia percebido que caíra no sono. Geralmente eu demorava a adormecer, e quando o fazia, sentia-me estranhamente trôpego.
Mas a luz que vinha da pequena janela do quarto abarrotado era fraca o bastante para me fazer perceber que horas do dia eram. Porque todos os dias eu despertava mais ou menos no mesmo horário, entre cinco e meia e seis da manhã. Ainda não conseguira uma explicação relatando meus turnos excessivos sobre livros e livros antes de nem sequer precisar fechar os olhos para estar realmente dormindo, e ainda por cima conseguir acordar na manhã seguinte sem precisar do aviso estridente de um despertador. Era algo que eu fazia constantemente; acender o abajur empoeirado ao lado da cama de dossel durante o fim de noite e viajar histórias adentro, não importando quais universos mostrassem a direção.
Essa era a única forma que eu encontrava para escapar da estranha realidade que me cercava. O que era um consolo, vindo de alguém tão estranho quanto os dias incontavelmente nublados daquela pequena cidade.
Minha visão sobre o lugar em que eu vivia era sempre a mesma. Em Franklin, eu julgava os acontecimentos, locais e pessoas – tão parecidas no modo de se comportar, vestir e falar, como se fossem uma paste austera de um todo sombrio. Mais ou menos como uma dança caótica e deprimente sincronizada na mesma ordem tediosa com o passar dos anos. Uma expectativa invertida. A cidadezinha da qual eu morava a mais tempo do que pensei ser possível conservava o aspecto melancólico e britânico, cujo eixo era tão previsível que se podia aprender a voar por sobre os penhascos ao final da rodovia e isso não faria a menor diferença para os demais moradores.
Não era um lugar do qual eu gostava de viver, com seus riachos pálidos e florestas escuras e misteriosas – parecendo invocar espíritos bizarros no silêncio que se estendia pelos bairros –, as clássicas construções vitorianas predominantes em cada maçaneta preservada na calamidade. Todos os habitantes eram iguais para mim, indignos de tal conhecimento e mutualismo em relações não conservadas.
Uma terra viva e cinza que parecia mortificada, ainda assim interessante de se observar. Mas meu único e solitário pretexto – não podia chamá-lo de ambição, não quando eu detestava qualquer atitude atroz para se conseguir esse prestígio que eu não me importava se faltasse – era continuar a ser o esquisito que eu sempre fora. Apaixonado por livros, minha fuga do presente perturbador que me acompanhava como uma sombra por todos os cantos possíveis e inimagináveis. Eu não gostava muito de meus defeitos e nem ao menos reconhecia minhas qualidades, mas detestava muito mais os outros, com seus olhares de ampola vidrada cercando cada movimento de um desconhecido, como uma barata intrusa ou um bobo-da-corte que não era bem vindo em qualquer local.
E eu estava residindo ali somente há um mês.
Dispensei as cobertas que me cobriam com um espreguiçar dolorido. O livro que eu estivera lendo de madrugada caiu de meu colo com um baque surdo no linóleo. Abaixei e cabeça para me lembrar da capa, e reconheci a história que me fora presenteada por um primo rico e escritor. Pierre Nollan costumava compartilhar dos mesmos assuntos que eu quando estávamos no colegial. Mas após sua tentativa frustrada de publicar romances de um jardim de tulipas murchas por sua própria autoria, meu parente decidira se aventurar pela Europa com o dinheiro reservado para sua faculdade.
Seus riscos valeram à pena no final. Graças ao seu grande gênio e combustível para criar novos jardins em narrações mais empolgantes de se ler, com a discreta ajuda de uma autora conhecida no ramo que mais tarde se tornaria sua esposa, Pierre conquistou seu lugar em minha lista de obras favoritas.
O azarado que agora freqüentava a faculdade era eu, obviamente.
Depois de trocar o moletom velho que eu chamava de pijama por meus trajes pretos e confortáveis, cruzei o corredor vazio cor de caramelo, a não ser apenas por uma mesinha com mais alguns livros empilhados ao lado de um vaso sem flores na cruza com a cozinha. Esse era outro aposento abarrotado, não por restos de pratos sujos, pois eu pouco produzia algum alimento por conta própria. Quase todo meu consumo vinha de enlatados e lasanhas prontas. Mas minha cozinha também não se encaixava no padrão normal de uma casa normal, não se significasse comum ter pinturas na parede leste, demonstrando desenhos nem bonitos nem feios, mas que expressavam muito bem meu outro vício. O próprio desenho. Além das janelas forradas de metal preto com a sombra de uma abóbora projetada no vitral, parecendo sempre tremeluzir à ausência de sol, a mobília era fora do comum para qualquer um que tivesse sorte ou azar de entrar naquela casa e deparar com várias pinturas projetadas por cada canto. E como raramente alguém me visitava, eu tampouco me preocupava com a decoração.
Ignorei os fantasminhas que acercavam uma mesa bamba de chá na minha parede e parti para a única refeição da manhã: o café preto e puro, sem açúcar. Geralmente eu incluía umas jujubas às pressas na hora de sair, mas hoje eu não estava com a menor pressa, então a bebida quente desceria solitária por minha garganta. Não me sentei como de costume dessa vez; por acaso eu ainda me sentia estranhamente focado naquele minuto. Coisa que era anormalmente feita nas segundas-feiras.
Após escovar os dentes e tentar inutilmente ajeitar os cabelos – que no último mês cresceram desajeitados ultrapassando o limite do queixo – puxei a alça da mochila do encosto da cadeira e olhei mais uma vez para a bagunça de meu quarto. Reconheci papéis amassados contendo rabiscos de desenhos que decorariam o corredor, passando os olhos por um tênis vermelho embaixo do console da escrivaninha, detendo-se em um único livro esquecido no vão embaixo da cama. Seu marcador era visível apenas por uns dedinhos, o suficiente para que eu voltasse a ele e o erguesse em minhas mãos.
Hamlet era o único livro que eu deixara de ler para começar no outro dia a fase de interpretação. As falas e emoções dos personagens deixaram de fazer sentido para mim, além de me prenderem completamente naquelas páginas velhas. Então eu recomeçava uma nova linha a cada manhã, preparando-me para manter o esforço de entender aquela loucura de teatro em livro.
Eu ainda não desistira completamente.
Olhei em dúvida para o objeto preto em minhas mãos; o marcador estava quase no fim. Enfiei-o na abertura da mochila e saí correndo, não antes de surrupiar algumas jujubas do pote decorado com abóboras ao lado da cafeteira. [...]

2º Parte - Diálogo.

– Para onde você pretende ir? – perguntou ele com sua voz rouca e meio preguiçosa naquele início de manhã.
– Para onde mais eu iria? – perguntei com certo sarcasmo; era complicado evitar a hostilidade no hábito do cansaço.
Ele riu.
– Quer saber? Por que você não pede um atestado ou coisa assim para se ver livre daquele lugar ao menos uma vez? Você está tão branca quanto as páginas velhas que tem de ler diariamente...
Foi a minha vez de rir. Não era um riso animado.
– Entenda uma coisa. Eu preciso da biblioteca e ela precisa de mim – atravessei a rua tentando combater o estupor do cansaço com palavras pouco válidas. – Fim da história.
– Ótimo. Volte para seu conto de fadas e me deixe sozinho em meu empório – disse ele, barrando facilmente meu caminho apressado com apenas três passadas à frente. Seus braços cruzaram-se diante do casaco.
Encarei aqueles profundos olhos escuros. Sebastien Leighton Knepper transmitia a sensação de que eu estava esquecendo de algo crucial, algo que particularmente o envolvia em minha rotina. E ele estava absolutamente certo; meu melhor e único amigo utilizava dessas poucas desculpas para me trazer de volta à realidade, desculpas essas que culpavam minha falta de atenção. Ultimamente, estávamos mais para um casal de velhos: desgastados.
– Você nunca diz que precisa do teatro e vice-versa – disse ele, sua expressão no rosto fino e pálido demonstrava a decepção nada convincente. Os cachos estavam protegidos do frio sob sua touca vermelha.
– Uma coisa é diferente da outra – rapidamente lembrei-o de meu argumento original. Esse também estava ficando desgastado, tanto que fazia com que Sebastien revirasse os olhos de descrença.
– Porque você precisa desse estágio para continuar na cidade e os ensaios são a parte que te salva da loucura – recitou ele, voltando os olhos para meu rosto.
Exatamente. Aquela era a parte conturbada de meu eu mais volúvel. O lado irresponsável de atriz. Bom, julgando por tudo que eu estava passando no momento presente, a fuga do palco era perfeitamente acolhedora. Fazia com que eu me sentisse verdadeiramente em casa, um cantinho feito sob medida só para mim.
Mas nem sempre as coisas saíam desse modo.
Começamos a andar novamente. O frio parecia mais cruel depois do ultimato.
– Você vai continuar com essa história de que eu nunca faço nada por inteiro? – discuti meio na defensiva. Eu tinha culpa no cartório, mas não queria impor uma briga. Mais outra. – Eu estou me esforçando, Seb. De verdade. Mas não sou uma máquina...
– Não, você é uma bibliotecária – interrompeu ele, calmo na superfície. Eu convivia com suas emoções há muito tempo para reconhecê-las. – Que, por acaso, resolveu se aventurar no palco como uma atriz para escapar do tormento.
– Os livros nunca foram um tormento – protestei, fechando a cara.
– Eu fui?
Parei abruptamente, meus pés se recusando a prosseguir.
– O que diabos você está dizendo? – comecei a piscar para os chuviscos no caminho do metrô.
Sebastien encarou meus olhos confusos.
– Fui eu quem sempre te estimulou, Lauren. Caso você não se lembre, nós nos conhecemos no palco.
É claro que eu me lembrava. O tempo não apagara a lembrança daquele fim de tarde em um dos ensaios na Companhia de Theatro Franklin. Eu o vi no centro do palco, recitando a fala de um plebeu. Foi o único momento em que pude ter a certeza de vê-lo livre. Depois que nos conhecemos, pensei ter notado uma sombra permanente de amargura em seu olhar, e atribuí isso a mim mesma. Mas Sebastien nunca me deixava levar a culpa por meus atos.
Para isso serviam os amigos, afinal de contas... Quanto consolo.
Eu não entendia onde ele queria chegar.
– Nós levamos uma vida suburbana de adolescentes conturbados desde que você topou fazer parte do elenco – continuou ele, percebendo que eu ficara muda. – E eu adoro isso. Adoro te ver meio sonâmbula pela manhã, resmungando. Adoro poder ser o ator que te salva durante uma ou duas horas daquele lugar que te satura.
Eu permanecia muda. Os chuviscos se transformavam em chuva forte e nem ao menos percebi que havíamos chegado ao metrô.
Sebastien me olhava com melancolia.
– Eu gosto de te ver no palco, Lau – murmurou ele ao meu lado, vagando os olhos pelos trilhos. – É melhor do que conviver com essa Lauren cansada o tempo todo, sem tempo para nada. Por isso acho que eu sou o responsável... Você não estaria assim se eu não tivesse te manipulado. Se é que você me entende.
– Não comece com isso – reclamei com a voz fraca. Era duro ouvir a verdade. – Fui eu que escolhi levar duas vidas. O problema do meu cérebro não tem nada a ver com você. Eu... acho que estaria pior se você não estivesse comigo.
A situação era tão comum que eu não ficava mais envergonhada e constrangida diante dele. Nós não éramos a qualificação banal de amigos, por assim dizer; eu o considerava muito mais, quase como um irmão. E detestava chateá-lo com minhas desculpas idiotas sobre a falta de tempo.
O palco era nosso recanto... E eu o estava destruindo com minha ausência.
Seria preciso mais do que isso para convencê-lo. Arrastei-o comigo para os últimos bancos do vagão, sentando de lado para olhar seu rosto. Sebastien era um daqueles garotos indies que não se preocupavam em demonstrar as falas fora de hora. Encantador e imprevisível. Disperso... Ele me protegia mais do que eu merecia. Eu devia mais a ele do que ousava imaginar.
– Agora me escute – comecei por minha vez. O sono escapava diante do cenário que começava a se desenvolver naquela conversa. – Você nunca foi um tormento para mim. Foi justamente o contrário. Não houve manipulação alguma, nunca teve. Fui eu. Sou eu, que nunca tem tempo de sobra para um amigo. O tempo correu, Seb. Nós não somos mais adolescentes e não temos mais horas disponíveis como antes. Estamos seguindo um roteiro diferente...
Seu olhar se contraiu.
– Espere – alertei, erguendo um dedo na altura de seu nariz. – Não significa que eu vou abandonar tudo. Eu estou me esforçando mais do que nunca para juntar as duas partes do meu eu. Elas estão meio confusas agora.
– Por que você se esforça tanto? – sussurrou ele, me olhando atentamente. Aquele traço em seus olhos me incomodava. – Eu não quero isso.
Fechei meus olhos, respirando fundo.
– Muito bem. O que você quer, afinal? Além do que eu já estou disposta a cumprir?
– Quero você de volta. Aquela garota que eu conheci há um ano atrás e que não tinha medo de matar uma aula para subir no telhado... Que tinha mais tempo para ficar comigo.
Uma risada escapou de meus lábios antes que eu pudesse detê-la, encobrindo falsamente o golpe de dor que me atingiu.
– Você está parecendo um menino resmungão – toquei a ponta de seu nariz gelado, deitando a cabeça no banco.
Ele não riu de volta.
– E você não mudou nada – refletiu rouco. De repente, senti sua mão em meu cabelo e fechei os olhos outra vez. – Acho que devo me vestir de Chapeleiro Louco no próximo ensaio e gritar no mínimo umas dez vezes que você está terrivelmente atrasada.
Imaginei a cena enquanto ele acariciava a bagunça de meus fios. E, mesmo que fosse necessário, eu não o deixaria tentar. Eu faria melhor da próxima vez, sem muitos erros e poucos sonhos, dos quais me recusava a pensar enquanto estivesse acordada. Seriam esses que me atormentariam.
Despedimo-nos em cima da hora nas escadarias, atrasados como sempre. Sebastien beijou minha testa e correu para sua primeira aula de artes. Eu caminhava o mais rápido que minhas pernas de chumbo podiam agüentar. O cansaço começava a romper a tensão sem sua presença; eu estava perigosamente perto de desmaiar novamente. Ao invés disso, teria de me concentrar como sempre naquele outro palco.
O palco que me saturava.
Eu não me permitiria pensar em suas palavras. Pelo menos não agora. Estava tão acostumada com a rotina que não enxergava a nostalgia do recomeço. Todas aquelas estantes de livros grossos e distintos me recebiam, reconhecendo-me. Eu não estava pronta para desapontá-las. Duvidava estar pronta para qualquer outra coisa.
Ainda assim eu tentava.
A Sra. Waldo – loira e produzida demais para uma diretora bibliotecária – nem pareceu notar o meu atraso. Assim, a cumprimentei como em todas as manhãs e vesti meu avental vermelho, procurando me distanciar de suas falas egocêntricas e de seus olhares sugestivos. Lembrei-me de quando a conheci diretamente; acabei me decepcionando um pouco... Eu idealizava uma senhora bondosa com infinitas histórias para contar. É claro que ela tinha muitas. Mas eu não conhecia nenhuma e não me preocupava mais em saber.
Vi-me sentada no centro do piso de pedra na sala de estudos do segundo andar. Não era como sentar no telhado, mas transmitia mais ou menos à mesma sensação. Toda a parede sul era revestida de vidro, visando à beleza cinzenta de todo o gramado que cercava a universidade, mesclada com alguns pontos marrons e alaranjados pendidos nas raízes. Eu cumpria meu mantra seguidas vezes antes de a biblioteca começar a encher. Sentava-me ali, de pernas cruzadas e cabelos soltos, esperando ver algo mais do que a paisagem me oferecia, contentando-me desse modo com ela.
Seria sempre uma relação de duas faces. Gostar e não gostar, ser ou não ser...
Sacudi a cabeça para espantar o fantasma passado. Seria difícil me concentrar se minha mente resolvesse vagar para o lugar em que eu gostaria de estar no momento. Talvez eu precisasse de terapia. Ou quem sabe eu já estaria acostumada com a loucura? Nenhuma hipótese me consolava. Por fim, levantei-me trôpega e iniciei meu expediente na estante mais próxima. A sensação de dever; meus óculos pendiam no nariz, meu avental ficava empoeirado, meu cabelo começava a se soltar do coque. Era reconfortante.
A porta abria e fechava com o passar das horas. Nesse meio tempo – imaginando se Sebastien me encontraria no intervalo, pensando se demoraria muito – eu já havia organizado a maior parte das estantes. Procurava não pensar muito em meu estado após a “reforma”, não até encontrar um espelho. Calculei mentalmente o tempo que levaria até o banheiro dos fundos para me ajeitar e voltar como se não tivesse saído, descendo apressada as escadinhas circulares sem reparar na variedade de alunos que conversavam em voz baixa. Um comportamento massivo que me surpreendeu. Talvez ainda estivesse cedo...
O ranger da porta se pronunciou outra vez. Mais por hábito do que por vontade própria, relanceei os olhos para a entrada do aposento, reconhecendo a última pessoa que não esperava ver tão cedo. Por reflexo, estanquei no degrau, quase tropeçando no fim da linha ao tentar me recompor.
Todos esses movimentos não foram captados por aqueles brilhantes olhos azul-elétricos. Bernard se ocupava com a alça da mochila pendida no ombro, tirando o cachecol e passando a mão rapidamente pelos cabelos desarrumados. A porta se fechou sozinha, provocando outro ruído.
Então ele me viu.
Era estranho se sentir tão diferente quando eu estava em sua mira. Era, de certo modo, irracional que as coisas tivessem mudado a meu ver. Não me sentia como tais adolescentes que se equivocavam com aquele mistério todo, mas em parte a teoria fazia sentido. Eu tinha absoluta certeza de que não era a única a notar sua aparência de outro mundo. E me tachava de idiota por isso.
Despertei daquele transe incomum e continuei como se ele não estivesse ali. Não valeria a pena me aproximar muito e ser humilhada por sua beleza. Acenei brevemente e sem graça para uma das monitoras que me viu no estreito corredor – muito mais arrumada do que eu – e disparei para o banheiro. Minha respiração era urticante em minha garganta. Encarei meus traços assustados no espelho velho sobre a pia de mármore, desprezando minha imagem costumeira. Lavei o rosto e ajeitei o coque, depois o soltei de novo. A histeria me irritava.
O que diabos ele fora fazer ali, afinal? O fascínio de ontem cedia lugar ao terror de hoje, manipulando meu controle. Eu não justificava as atitudes antes dos gestos, porque não arriscaria outros minutos em sua presença. Eu não permitiria a mim mesma outro turno àquele conto de fadas maluco. Respirando fundo, prendi os cabelos em um rabo de cavalo frouxo, sacudi a poeira do avental e brinquei um pouco com a franja, afastando-a dos olhos subitamente brilhantes de euforia.
Encarei meu reflexo uma última vez antes de sair.
E mostrei a língua para ele.
– Ei, qual é o último lançamento? – perguntou-me uma voz enquanto eu subia atrapalhada de volta para a sala.
Me virei e dei de cara com Harlow Wadden Burton, uma das garotas do elenco.
– Oi – cumprimentei com um sorriso involuntário. Eu gostava dela, seu jeito de alguma forma simpático se diferenciava do meu, complementando-o ao mesmo tempo.
Seus olhos amendoados e castanhos sorriram para mim.
– E aí, bibliotecária? – os cabelos bastos estavam trançados por sobre o ombro. Seu estilo inteligente de garota das ruas me intimidara no começo. Agora eu poderia dizer que éramos... boas amigas.
Eu precisava me livrar do fardo do qual todos me chamavam por aquele nome. E tinha de parar com o distúrbio injusto de que todas as garotas que conhecia até então eram mais bonitas e confiantes do que eu.
– O de sempre – respondi à pergunta explícita, subindo as escadas na sua frente. – O que você estava dizendo? Ah, sim... acho que temos Macbeth em algum lugar por aqui.
Ela riu.
– Não precisa me agradar em seu cantinho, Lauren – ela encolheu os ombros. – Só passei aqui para confirmar sua ilustre presença no Theatro hoje.
Eu murchei por dentro.
– Você não deveria estar na aula? – esquivei-me por reflexo, ajeitando os óculos. Harlow era colega de classe de Sebastien. E tinha uma mente tão impulsiva quanto.
– Escapei para buscar um livro para o próximo período – desconversou ela, sorridente.
– Desde quando vocês lêem livros nas aulas de artes?
– Desde sempre – ela vagou os olhos pela estante lateral. – Você tem mesmo Macbeth?
Revirei os olhos, desistindo.
– Ele te mandou até aqui para me vigiar? – perguntei, franzindo os lábios. Sebastien não largava de mim nem quando estava longe. Isso me tirava do sério.
Harlow ergueu uma sobrancelha.
– Quê? – Ela balançou a cabeça com uma risada descontraída. – Você não é o centro do universo, garota. Deveria saber disso.
– Vou me lembrar da próxima vez – murmurei de cara amarrada.
Ela afagou meu ombro. Harlow era mais alta do que eu. E também sempre tivera mais desenvoltura no palco, como todos os outros atributos que me faltavam... Enruguei a testa e lutei para me livrar do senso ridículo de que eu tinha algum parentesco com um ET, e virei o rosto na direção das últimas mesas.
Lá estava ele. Quase tinha me esquecido de sua presença, o que naturalmente era impossível esquecer. Seus olhos rastrearam minha desenvoltura desengonçada e se detiveram nela; elétricos, lindos e intensos.
Fiquei paralisada.
Bernard baixou a cabeça, voltando a se concentrar no livro. Como se não tivesse me visto ali há meio segundo, ou como se eu não valesse o esforço. Bem, agora eu estava mais arrasada do que antes. Respirei uma golfada de ar e tentei voltar para meu corpo.
– Lau? – o riso na voz de Harlow desaparecera. Ela agora me cutucava insistentemente. – Ei, acorde. Você vem com a gente ou não?
Ergui os olhos para sua expressão confusa, temendo que ela tivesse presenciado meu estado deplorável de nervos.
– Desculpe – murmurei, retirando um livro qualquer da prateleira e pretendendo descer e me esconder no armário. – Encontro vocês no intervalo. Agora tenho de trabalhar.
– Tudo bem – respondeu ela, olhando meu rosto como se estivesse vendo algo que não gostaria de ver. Tampouco me preocupei em disfarçar.
– Ah – lembrei enquanto meu pé alcançava o primeiro degrau. Lutei tremendamente a fim de não olhar para trás e encontrá-lo emudecido no canto. – Macbeth está na terceira prateleira da primeira estante.
Harlow continuou me fitando.
A sensação de que algo errado fazia parte de mim nunca fora um problema antes. Eu sempre soube que meu cérebro não funcionava como o dos outros, recusando-se a pensar da mesma maneira que o resto do mundo. Eu sabia que era diferente de tantas outras garotas e me orgulhava disso.
Até agora.
Meu pai – o fantástico cineasta londrino Jason Curtis Worden, o único que era capaz de me entender – costumava dizer que eu não me encaixava no protótipo comum feminino. O que significava eu não ligar para maquiagem nem gostar de passatempos intragáveis. Eu era a garota de humor negro que gostava de uma bom guarda-roupa preto e que assistia uma maratona de filmes de terror em sua companhia depois do cachorro quente suculento do jantar.
Eu era incomum e gostava do incomum.
Seria mesmo tolice dizer que os tempos mudaram? A banalização de uma universidade e todos os seus conceitos restantes seriam suficientes para me mudar de uma hora para outra? Para separar minha família? Eu estaria mesmo largando tudo pelo qual me acostumara no passado, minhas raízes, como Sebastien dera a entender que eu fizesse? Se fosse isso – e a parte normal de meu cérebro assimilava essa teoria – eu não gostaria de me ver realmente. Eu não era o centro do universo e não precisava ser. Eu só precisava continuar sem o tormento de me sentir a excluída da sociedade. Muito menos tentar chamar a atenção de um veterano.
Isso requeria um esforço bárbaro. [...]


Paro por aqui com minhas confissões de terça. O tempo lá fora está nublado, do jeito que gosto, e estou pensando em preparar uma xícara de café fumegante ao invés de almoçar. Os velhos vícios de sempre...
P.S.:Agradecimento rápido à trilha de The Vampire Diaries, Plus 44 e Lily Allen. Ótimo pano de fundo para seguir escrevendo até as juntas dos dedos reclamarem do cansaço.


Boa tarde! (:

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