quarta-feira, 17 de março de 2010

Pouco aos poucos

"Ouve-me. Ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa que na verdade falo, porque eu mesma não posso." Clarice Lispector

A quarta se dividiu em lapsos de serenidade e melancolia. Pela manhã, uma conversa com o pai sobre futuro. Inventei carinhosamente um caminho inacabado, compartilhando-o desajeitadamente. Não sou de expressar sonhos em voz alta; os revelo com uma piscadela, uma frase. Alguma palavra solta com o signficado do qual preciso. Cabe aos que ficam próximos decifrarem os enigmas de minhas engrenagens. Não é uma questão de lógica, e sim de contato. Meus dedos geralmente são frios, marcas que não se alteram mesmo em constante movimento na trajetória de linhas. Com mais atenção, notam-se as olheiras sob a cavidade de meus olhos; resultado de um processo intuitivo de quem se assusta em perder as entrelinhas. Tenho vontade de escrever, mas não consigo. Sinto falta da liberdade do papel, da viagem da alma, da companhia certa. Sem pensar em um porquê, criação sem esforço. Simplicidade com jeito aprofundado. Sinto falta de mim. Nesses dias tempestivos, fragmentos de mim se espalharam por aí. Restaram alguns buracos. Quando o vento sopra da costa leste, sinto a vibração reverberar no oco. Prefiro chamar tal reação de ausência; e não é que prefiro, a palavra em si não me agrada. Lembra de uma parte tremendamente desejável, mas inalcansável. Linhas insistentes que pipocam em algum lugar ao fundo, mas que não podem completar a transição concreta. Ficam presas no calabouço, à espreita, cutucando as feridas furadas. Ausência do que é necessário ouvir, que propositalmente corre pelo lado oposto ao qual me encontro. Dói, mas é administrável. Como quando o pai nega o doce após o dever cumprido. A divisão se completou no arrastar das horas, intercaladas à tarde pela companhia inocente de quem não necessita que eu faça sentido ou me explique. Estou devendo uma ao meu irmãozinho por essa. Depois da despedida costumeira, meus devaneios eram notas de piano ondulando pelos buracos. Ajudou-me a relaxar, canalizar a dor incompreensível para outros canais menos importantes. Um salgado meramente desejável. Eu estava cercada de palavras carinhosas, reconfortantes... rodeada por livros e olhares amigos que, inconscientemente, preenchiam devagar o oco originado pela solitária palavra que me fugira. As companhias preservavam meu silêncio gritante, aceitavam-no como um complemento intrínseco de mim. As linhas foram silenciando, partindo nos ombros da dúvida por outros cantos. Deixando meus ombros livres para repousarem em um abraço. Uma prova do doce ao fim da noite. Senti o vento apostando corrida com as batidas aceleradas do coração na volta para casa, emaranhando meu cabelo. Revisei meus atos, me dando conta de que nenhuma piscadela fora pronunciada, nenhuma frase fora rabiscada no cabeçalho. A palavra chave já estava esquecida. O único contato intuitivo do qual me lembro fora a conversa desajeitada no início da manhã. Eu lhe disse que teria uma livraria, um caminho inacabado carinhosamente proposto por mim mesma, um pouco aos poucos no decorrer das entrelinhas. Voltarei a escrever, separando um espaço para as expressões de meu enigma se desenvolverem. Deixarei minhas palavras respirarem, desequilibradas em meus complementos. Acompanharei o rumo do vento sempre que sentir a necessidade da vibração ondular por meus pedaços recuperados. Estou em manutenção.


Abraços! ;)

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