quarta-feira, 10 de março de 2010

Baralho na mesa

"Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim."

Clarice Lispector


É possível mudar uma concepção de mundo em menos de uma hora? Se significar eu ter me virado toda do avesso, posto os olhos para dentro a fim de desbravar o funcionamento de meu condado interior, então eu me mudei.
O mundo sempre me pareceu uma grande bola de gude. Daquelas mais brilhantes e entusiásticas que a gente topa por acaso em uma vitrine quando criança; uma bola de gude dada de presente, com a promessa de ser cuidada, mas que acabou desgastada pelo tempo. Eu até agora só explorei minha face de mundo, suas devidas cores e denominações, cada dia com o toque suposto a ser, cada gota pingando um sabor diferente e único. Proveitoso. Todas as minhas motivações originaram-se de meus propósitos e suas diversas consequências. Até provei do errado para fabricar o certo. Ignorei o mais impertinente caminho e parti para a rota desocupada de quem não conhece a tradução do infortúnio. Minha ambição é o conforto. Troquei os acordes pelas teclas mornas do piano. Rearrumei meu cafofo. Revisitei o mar em pensamento. Morri metamorficamente em desgosto e decepção. Nasci de novo em novas provas de carinho e necessidade de se estar junto com quem quase não conheço, mas que me conhece mais do que posso me descrever. Compreendi a poesia que abominava no primeiro grau. Xinguei a professora antes de adaptar o conteúdo. Virei a cara aos que falam todo o tempo que me compreendem, mas que na verdade não reconhecem lhufas de mim. Abri meus braços para os riscos. Avancei rabiscos. Aprendi a matar baratas. Estou há mais de um ano longe do sul e consegui não pegar sotaque de barriga verde. Meu placar de gols aumentou de um para três. Descobri que posso gostar de matemática quando não estou com sono. Posso desprezar o português e suas regras de predicados. Estou viciada em desenhos infantis e filmes de época. Minha atual pretenção é costurar uma almofada e bordar um pano de prato. Acredito mais em assombrações e contos de fada do que pensei ser saudável. Troquei a timidez pela simpatia. Destrocei insultos em pessoas erradas e formatei elogios em pessoas erradas, também. Estou até hoje criando a pessoa certa em meu inconsciente. Daqui a alguns anos, minha moradia será uma casa de campo com muitos dálmatas. Aprendi a cozinhar razoavelmente bem após um mês de completar 18. Prefiro salgados a doces. Escrevo um livro por dia só com as imagens que capto de meu cotidiano. Reproduzo histórias, rebobino contos, invento crônicas. Um dia vou passar uma noite com meus netos perto da lareira e me lembrar que já fui como eles ao identificar cada diferença. Vou abraçar meus avós bem forte antes disso. Vou ter um conjugado para morar com minhas amigas da faculdade. Vou desfilar na passarela da cama no quarto. Plantarei roseiras, colherei frutos. Baterei perna no shopping. Namorarei um porsche enquanto ainda não puder comprá-lo. Jogarei baralho todas as noites. Serei mais independente do que o restritamente restrito. Acenarei um tchau para os que ficarem. Aprimorarei meu inglês na Grande Londres. Terei uma coleção de sapatos. Terei uma nova história em mim, um capítulo para cada variável dia. Escreverei o final com dedos dançantes, atrapalhados e fulminantes. Eu serei a narradora. Dedicarei a sinopse aos desconhecidos de gestos, aos iguais de pensamento. E continuarei sendo eu de um jeito diferente.
Lembrarei à mesma amiga que sempre é possível ser exigente, uma dose a mais do que o necessário, ou o desejável. Porque não é mais um dia-a-dia. É uma vida-a-vida que precisa ser vivida. Simples assim, como respirar entre aspas.
As aspas que descrevem minha nova concepção de mundo. Minha bolinha de gude envelhecida.
Abraços! (:

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